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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Por amor ao cinema

Os cinéfilos da minha geração, não importa onde morassem, compartilhavam os mesmos hábitos e as mesmas manias. Anotavam num caderno os filmes assistidos e os qualificavam com notas ou estrelinhas. Os mais caprichosos ilustravam tais registros com uma colagem dos programas distribuídos na porta dos cinemas e os anúncios dos filmes recortados dos jornais. O amazonense Cosme Alves Netto fazia tudo isso em Manaus, e porque era bom de desenho, seus cadernos mais pareciam um fanzine. A idade não lhe diminuiu o ardor gráfico. Cosme tinha alma de desenhista de quadrinhos. No bolso de suas guayaberas havia sempre pelo menos duas canetas hidrográficas para qualquer eventualidade. 

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Atualização:

Alguns desses mementos podem ser apreciados no documentário Tudo por Amor ao Cinema, de Aurélio Michiles, que na próxima semana estreia no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Manaus. São 98 minutos de celebração da cinefilia mais pura e culturalmente profícua, tal qual a praticou Cosme, nosso mais atuante e internacionalmente conhecido guardião de filmes e da memória cinematográfica. Por amor ao cinema, Michiles já fizera Que Viva Glauber e O Cineasta da Selva (sobre o pioneiro caçador de imagens da Amazônia Silvino Santos); e agora nos brinda com este retrato do mais apaixonado “colecionador de sombras” que o Brasil já teve. 

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Colecionar sombras é o que fazem os curadores de filmotecas. A expressão, criada por Paulo Emilio Salles Gomes, decano da espécie no Brasil, não diz tudo sobre o papel mais abrangente que curadores especiais como Cosme, o francês Henri Langlois e o próprio Paulo Emilio exerceram à frente de suas respectivas cinematecas. Mais do que “membros de uma sociedade secreta e clandestina” dedicada ao “crime de amar e proteger o cinema”, foram inestimáveis agitadores culturais. Promoviam exibições de filmes fora do circuito comercial, discussões sobre linguagem, estética e política cinematográfica. Eram, acima de tudo, intelectuais aglutinadores. 

Ao estender sua militância cultural à revolta dos marinheiros, em março de 1964, projetando para os amotinados O Encouraçado Potemkin, Cosme entrou para o índex dos militares que, dias depois, derrubariam o governo Goulart. Cinco anos mais tarde, foi preso e torturado. Nem por isso, deixou-se intimidar pela repressão da ditadura. Assim como Langlois salvaguardou filmes até debaixo da cama durante a ocupação nazista, Cosme abriu os porões da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio para abrigar filmes perseguidos e proibidos pelo regime, arquivando-os com títulos falsos, para enganar a polícia. Quem poderia supor que as latas de A Rosa do Campo contivessem os negativos do primeiro Cabra Marcado Para Morrer

Por ser de esquerda, um católico marxista, com estreitas relações com o pessoal de cinema de Cuba e do Leste Europeu, muitos supunham que Cosme tivesse um paladar engagé, mais afeito a “filmes politizados”, de denúncia e contestação. Nada disso. Ele adorava e conhecia a fundo seriados e fitas de horror e ficção científica. Planejamos um livro a quatro mãos sobre filmes de temática nuclear, pomposamente intitulado O Cinema da Véspera Atômica, que ficou nas anotações e na filmografia, meticulosamente levantada por ele, repleta de Flash Gordons, cientistas loucos, mutantes e Godzilas. 

Não se lembrava do primeiro filme que vira na vida – desconfiava ter sido uma versão de O Conde de Monte Cristo –, mas nunca se esqueceu do impacto que lhe causara a cena na sala de aula de O Menino dos Cabelos Verdes, primeiro filme de Joseph Losey, uma alegoria sobre a discriminação racial (e capilar) e os horrores da recém-finda guerra mundial. Seu filme preferido era Cantando na Chuva e seu ídolo, Gene Kelly. Por uma coincidência poeticamente cinematográfica, Cosme e seu ídolo morreram no mesmo dia, 2 de fevereiro de 1996. Cosme acabara de completar 59 anos. 

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Ficamos amigos em 1960, depois de uma tola polêmica, envolvendo a seleção de determinados filmes para uma mostra dedicada ao cinema francês, no GEC (Grupo de Estudos Cinematográficos) da União Metropolitana de Estudantes, cineclube que Cosme fundara três anos antes e que dividia com a Cinemateca do MAM o lazer da moçada cinéfila da era JK. Critiquei a mostra no jornal estudantil O Metropolitano, também ligado à Umes, Cosme defendeu suas escolhas com firmeza e elegância, e, porque tudo que fazíamos era por amor ao cinema, selamos uma amizade mais sincera e consistente que a de Rick Blaine com o capitão Renault. 

Trabalhei antes dele na Cinemateca, ainda na gestão de Moniz Vianna, como assistente de curador, ao lado de Walter Lima Junior. Cosme foi o quarto na sucessão de curadores; sucedeu, em 1965, a Fernando Ferreira, que fora precedido por José Sanz e a dobradinha Moniz Vianna-Ruy Pereira da Silva. Com Cosme, a Cinemateca expandiu-se aqui e lá fora, ampliou seu acervo, diversificou suas atividades, consolidando-se como um núcleo irradiador de cultura, à imagem da Cinemathèque de Langlois.

Já o conheci bonachão, mas ainda sem guayabera e charuto em riste, com aquele ar de soberano chinês herdado dos índios que lhe notou Eduardo Coutinho. Viera para o Rio estudar filosofia, podia ter ficado rico cuidando dos negócios do pai, no Amazonas, mas, ao saciar uma curiosidade (onde estavam os filmes que lhe encantaram a infância?), descobriu sua verdadeira vocação. 

Numa entrevista para a TV, quatro dias antes de seu coração parar de bater para sempre, Cosme queixou-se a Antonio Abujamra não dispor de tempo para assistir aos filmes que agora tinha à disposição. É um dos momentos mais tocantes do documentário de Michiles, que com engenho e sensibilidade de cinéfilo reconta um bom pedaço da história do cinema através da biografia de Cosme, e vice-versa. 

Cosme ora é Domingos de Oliveira (no documentário sobre o Cinema Novo que Joaquim Pedro dirigiu para a TV alemã em 1968), ora é Reginaldo Faria (torturado em Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia), ora é Joel Barcellos (idem, em Jardim de Guerra), ora é Martin Lassale (fugindo da polícia em Pickpocket) e até George O’Brien (em Aurora, quando este se veste às pressas para ir atrás de Margaret Livingston). Não é preciso identificar todas essas referências para entender suas rimas e alusões. Mas quem as identificar terá, com certeza, deleite redobrado. 

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Opinião por Sérgio Augusto
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