"Pólvora e Poesia" pede público inquieto

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Por Agencia Estado
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Um dos mais produtivos e ambiciosos dramaturgos brasileiros, Alcides Nogueira lançou-se em uma empreitada arriscada. Em Pólvora e Poesia, decidiu levar para a cena a vida de dois poetas da França do século 19, um deles genial, o outro menos gigantesco, mas ainda assim um mestre. Como se fosse pouca coisa o fato de traçar perfis de poetas franceses, Nogueira decidiu complicar as coisas. Retratou essas vidas não por meio de uma narrativa biográfica comportada e cronológica, mas por uma seqüência fragmentada de cenas na qual a poesia e a palavra poética têm do início ao fim mais importância que os episódios. Pólvora e Poesia, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, com direção de Márcio Aurélio, não resultou em uma teatralização das trajetórias de Paul Verlaine (1844-1896) e Arthur Rimbaud (1854-1891). O texto aproxima-se mais de uma biografia poética. Nogueira iluminou alguns trechos da existência dos poetas, que foram também escandalosos amantes, por meio de versos. E não recorreu só a obras da dupla. Empregou textos de Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade e Henry Miller. Mas os escritos de Verlaine e Rimbaud predominam. Surgem com tanta freqüência que se costuram ao texto do dramaturgo, constituindo com ele uma unidade indestrinçável. A peça de Nogueira é admirável. Constitui um perfeito fecho à trilogia em que o autor examinou a gênese do discurso moderno (as outras pernas do triângulo são Ópera Joyce, montada nos anos 80, e Gertrude Stein, apresentada na década de 90). Em Pólvora e Poesia, a lírica fala mais alto que a prosa. Os tormentos que assaltaram os artistas, a incompreensão de que foram vítimas, a raiva e o desprezo que alimentaram pela sociedade e, ao fim, um pelo outro, a radicalidade de Rimbaud e as labirínticas contradições de Verlaine, tudo isso está em cena revestido de palavras candentes e impetuosas. A produção conta com inspirados cenário e figurinos de Gabriel Villela. Um pano de fundo de papelão rabiscado e rasgado serve como perfeita moldura para o embate de Verlaine e Rimbaud. A iluminação de Márcio Aurélio é irretocável, dança ao som das melancolias verlainianas e das luminosas asperezas rimbaudianas. A trilha sonora de Alcides Nogueira, no entanto, é discutível. Chopin fornece a música para a peça, em dose tão maciça, que com freqüência asfixia o texto. Nogueira agiria melhor se apostasse mais no silêncio. Apesar disso, é impressionante a atuação do pianista Fernando Esteves. A direção de Márcio Aurélio criou uma montagem seca. Trata com frieza o desequilíbrio trazido pela paixão. Não há erotismo, os atores mal se tocam. É uma leitura discutível do texto veemente de Nogueira. Esfria a peça. Mas, em vez de fazer o espectador pensar sobre a razão de tal procedimento - e esse parece ser o alvo de Márcio Aurélio -, incomoda-o pela assepsia. Limpeza - O momento de nudez de João Vitti (Rimbaud) e as passagens que mostram sua relação estranha com piolhos, usados como armas contra a família de Verlaine, soam tão neutros que, embora sua meta seja bem outra, acentuam o clima de limpeza que cerca Pólvora e Poesia. Nada mais distante do espetáculo que as palavras ditas por Verlaine a sua ex-mulher sobre a própria imundície. No elenco, Leopoldo Pacheco, excelente ator, brilha como Verlaine. Desenha o artista com simplicidade no início e desvenda aos poucos a confusão em que vive, desejoso tanto do mundo respeitável, confortável e seguro que tinha na casa da mulher, Mathilde, quanto da vida errante, boêmia e desregrada que lhe oferece o jovem amante, Rimbaud. João Vitti, por sua vez não atinge o elevado grau de intensidade que o personagem requer. Fica aquém do gênio. Ilustra-o, mas não chega a vivê-lo. Reduz com isso seu alcance. Apesar de ter pontos em seu desfavor, Pólvora e Poesia traz uma somatória de qualidades que o tornam um espetáculo a ser visto. Por públicos inquietos, exigentes, não pela turma para quem teatro é ponto de passagem antes da pizza sabática. Pólvora e Poesia. De Alcides Nogueira. Direção Marcio Aurélio. Quinta a domingo, às 18 horas. R$ 15,00. Centro Cultural Banco do Brasil. Rua Álvares Penteado, 112, tel. 3113-3600. Até 2/9.

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