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Poetisa construiu visão contraditória do Brasil

Por Agencia Estado
Atualização:

A poetisa americana Elizabeth Bishop, nascida em Massachusetts, mas com o coração preso à serra de Petrópolis, desembarcou no Porto de Santos, São Paulo quando já era uma mulher madura, de 40 anos completos. O que deveria ser só uma pequena escala em meio a uma excursão rumo à Terra do Fogo, no extremo sul do continente, se converteu, de modo súbito, numa estada que, com longas interrupções na fase final, duraria mais de 15 anos. A temporada brasileira, fato acidental e imprevisível na vida de Elizabeth, transformou-se numa experiência profunda, imantada pela relação apaixonada que viveu com a arquiteta brasileira Lota Macedo Soares. Teve também efeitos importantes em sua escrita e pode mesmo ser tomada, pelo que guarda de imprevisto, como uma metáfora para poesia de Elizabeth Bishop. Foi também de quase nada, de palavras acidentais e de imagens absolutamente imprevistas, que ela tirou os ora vastos, ora coesos, mas sempre espessos versos que escreveu, como esses de Convite à Senhorita Marianne Moore: "Venha como branca luz no céu furta-cor,/ venha como um cometa diurno/ que carrega uma comprida cauda de palavras nítidas." A referência a Marianne Moore, outra poetisa extraordinária (que foi talvez a grande preceptora da obra do brasileiro João Cabral) e 24 anos mais velha que ela, é significativa. O destino, empenhado em apontar esse vínculo, que estava bem mais na ordem do intelectual, faria com que Elizabeth perdesse a mãe só dois meses depois de conhecer a senhorita Marianne, em 34. A ironia, que Marianne Moore misturava com um equilíbrio intelectual severo e uma vigilante contensão, devia servir-lhe de contrapeso a ela, Elizabeth, que aqui chegou ainda não recuperada da depressão intermitente, do alcoolismo, da asma, muitas vezes atormentada pela idéia de suicídio. E será em Samambaia, na borda de Petrópolis, no topo da montanha e com a escolta de Lota (ela também pragmática, amiga e colaborada de Carlos Lacerda) que Elizabeth encontrará a paz que buscava ou acreditará ter encontrado. E, por tabela, chegará à elegância reflexiva, a meio-termo entre o relaxamento e o grito, que preside seus poemas. Como em O Ribeirinho: "Tem coisas que já aprendi,/ mas vou ter de estudar anos,/ que é tudo muito difícil." É no Brasil que se sentirá por fim, como diz sua biógrafa brasileira, Carmen L. Oliveira (autora do magnífico Flores Raras e Banalíssimas), liberta da mediocridade do mundo. Foi ainda presa a uma vida que lhe parecia medíocre que Elizabeth Bishop chegou ao Brasil, fato que a levou a um contraste que, espantada, a fez escrever em Chegada em Santos: "Eis uma coisa; eis um porto;/ após uma dieta frugal de horizonte, uma paisagem," Mesmo se isolando em Samambaia, Elizabeth se deixaria envolver pelas tonalidades fortes da poética brasileira, tornando-se, mais tarde, tradutora para o inglês de Bandeira, João Cabral, Vinícius, Drummond e Joaquim Cardozo. Traduções em que exercitou seu espírito de viajante, não só por terras distantes e por amores remotos e incompreendidos, como o que viveu com Lota, mas também por outras línguas, estranhas a princípio, mas justo por isso ricas. A poesia de Elizabeth Bishop, em conseqüência, se assemelha a uma zona de confluência, em que versos longos se derramam em frases curtíssimas, em que reflexões serpenteantes se encadeiam com arroubos apaixonados, positivo e negativo prensados numa mesma placa, uma encruzilhada em que os estilos navegam, sem apego a preceitos, protegidos apenas pela limpidez da palavra. Ela própria esquiva, sombria, hipersensível, viveu uma temporada de alto contraste não só com a nitidez de Lota, uma mulher solar que era amiga de Mário de Andrade, freqüentava o ateliê de Portinari e circulava entre políticos, mas com a paisagem tropical que a cercava. Foi Lota para que fique bem claro quem ela foi quem, nos conta Carmen Oliveira, convenceu o birrento Lacerda a substituir os medonhos 1.800 postes que iluminariam o Aterro do Flamengo, conforme o projeto original, idéia que transformaria o parque num paliteiro, pelos 120 postes gigantes que, à noite, hoje recobrem o parque com um luar falso. O inesperado é que, 16 anos depois de se conhecerem, durante uma visita a Nova York, deprimida e não vendo mais chances para si, foi ainda Lota, a forte, e não Elizabeth Bishop a frágil, quem se matou, atestado talvez do poder invulgar das palavras. Se nos poemas, mesmo nos longos, Elizabeth sempre prezou a concisão, derramou-se à vontade nas cartas que escreveu (para Marianne Moore, para Roberto Lowell), produzidas ao longo das quase duas décadas de Brasil e que renderam um livro magnífico, Uma Arte, que entre nós mereceu uma edição ampliada. Continuou a derramar-se nas refregas do alcoolismo e a escrever versos apegados aos detalhes, às minúcias de vida, que a atmosfera de Samambaia, com insetos, lagartos, pequenas flores e outras sutilezas, veio reforçar. Isolada na montanha, Elizabeth Bishop construiu uma visão contraditória do Brasil, sempre um pouco perdida no bojo das impressões fortes que a tomavam como surtos, um tanto desinteressada das visões de conjunto, das amplitudes, das abstrações intelectuais. Para ela, a beleza do mundo estava nos pormenores escrupulosamente visitados, poesia perdida no banal, pronta para ser encontrada. Bastando, para isso, ter olhos. Como disse em Ida à Padaria, poema em que descreve um passeio pelas ruas de Copacabana: "Os bolos, de olhar esgazeado,/ parecem que vão desmaiar./ As tortas, gosmentas, vermelhas,/ doem. O que devo comprar?"

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