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Poesia de Montale ganha versão em português

Sai no Brasil o áspero Ossos Sépia, um dos primeiros livros de poesia do italiano Eugenio Montale, lançado originalmente em 1925

Por Agencia Estado
Atualização:

Na década de 20, a humanidade acompanhava, receosa, o surgimento de ideologias que pregavam a violência como solução única. Em Roma, a força de uma marcha de milícias fascistas obrigou o rei Vittòrio Emanule III a convocar o líder da passeata, Benito Mussolini, para chefiar o governo. As instituições italianas foram relativamente preservadas até 1929, quando foi estabelecido o regime de partido único, liderado por Mussolini. A angústia pela instalação do terror influenciou o trabalho de diversos artistas, como já se verificava anos antes, em 1925, quando foi publicado o livro de poemas Ossos de Sépia, de Eugenio Montale, que a Companhia das Letras lança na terça-feira, com tradução de Renato Xavier (230 páginas, R$ 27). Trata-se de uma das primeiras obras de Montale, um dos maiores poetas italianos do século passado por exprimir, com versos herméticos, uma visão complexa da existência, combinando elementos descritivos e uma percepção intimista da realidade. Por conta de uma obra que inspirou poetas no mundo inteiro, Montale foi premiado com o prêmio Nobel de literatura em 1975. Até concluir a primeira versão de Ossos de Sépia (houve outras, em que acrescentou novos poemas), Eugenio Montale preparou-se adequadamente. Filho de uma família de comerciantes, o poeta, nascido em 1896 em Gênova, recebeu uma sólida educação, além de se dedicar a outras atividade artísticas - como estudar música com o barítono Ernesto Sivori. A eclosão da 1.ª Guerra Mundial, porém, em que serviu como oficial da Infantaria, determinou uma alteração em seu caminho: depois da morte de Sivori, decidiu-se pela carreira literária. E, quando começou sua devoção à poesia, Montale já detinha uma rica e versátil cultura, com um gosto refinado para a música (especialmente de Bellini e Debussy), a pintura impressionista e a arte dos grandes novelistas europeus do século 19. Atrocidades - Sensível aos efeitos provocados pelos fatos históricos e pessoais, a poesia de Ossos de Sépia reflete a desilusão do jovem indisposto a assumir os negócios da família, além das imagens ainda vivas que guardava do horror da guerra. Entre as atrocidades presenciadas pelo soldado, estava a lembrança do fuzilamento de um jovem acusado do furto de um relógio. O incômodo está presente até na escolha do título do livro: refere-se aos ossos deixados pelos moluscos (conchas calcáreas) na praia. "Já nesse livro, Montale nos traz o mistério do seu ´mal de viver´. Fala, no entanto, do milagre laico, ao qual se refere com palavras alusivas. Procura uma rede que, por sua vez, nos é dada durante a existência e que se rompe graças a uma amizade e a um encontro. Esta é a fé de Montale. Amizades existem, são poucas, mas intensas", comentou a poetisa Annalisa Cima, em entrevista quando do lançamento do livro Diário Póstumo, outra obra de Montale. Tornada sua herdeira, ela é responsável pela Fundação Schlesinger, instituição criada em Lugano, na Suíça, com a finalidade de preservar e organizar originais de autores contemporâneos. Lá estão os principais documentos deixados pelo poeta. O tema central da poesia é o mal de viver, a consciência de ser prisioneiro de um mundo em que o homem não representa o ponto central. É a angústia, portanto, que impulsiona Montale a escrever, mas, apesar de desiludido, ele não perde a esperança, que é visível nos versos dedicados ao mar (Mediterrâneo), vistos como uma autêntica lição de vida: "E um dia essas palavras sem rumor/ que cultivamos contigo, nutridas/ de cansaço e silêncios,/ a coração fraterno hão de parecer/ sápidas de sal grego". "O medo do futuro condizia com sua natureza pessimista", conta Annalisa Cima. "Para quem teve a sorte de conhecê-lo bem, Montale reservava surpresas. Ele apresentava uma estranha alegria de viver dedicada somente às artes, que o fazia sobreviver e vencer o inato senso de impotência." O tom áspero dos versos do livro (que são chamados de "ossos") revela o pessimismo de Montale. Ossos de Sépia inicia-se com um capítulo intitulado Movimentos, que inclui poemas com marcantes traços musicais e simbolistas, como observa Renato Xavier, na introdução da edição brasileira. "A identificação do poeta a paisagens e situações concretas em que a presença humana é amortecida pela renúncia de intervenção denota uma atitude inicial mais conciliatória com a realidade", afirma. Métrica - Já a seção que dá título ao livro, Ossos de Sépia, reúne poemas curtos que tratam da degradação do universo. "Aqui, as tentativas de acordo entre o ego e o universo são frustrantes", observa Xavier, que preferiu não abrir mão da métrica e da rima em sua tradução, em favor de um texto em português totalmente desprovido de seus elementos líricos. A linguagem utilizada por Montale é marcada por palavras inusitadas ou que caíram em desuso, o que contribui para que a poesia seja chamada de hermética - percebe-se também a presença de referências culturais e pessoais, de citações, tons e registros. É evidente, por exemplo, a influência de A Divina Comédia, de Dante, em sua linguagem, principalmente as imagens do inferno presentes no poema Arsenio. "Ao ter presente a declaração de Montale de que a sua poesia nasce de fatos vividos e de que ele não sabe inventar nada, o leitor deve observar que as suas imagens, ainda que relacionadas ao tema tratado, podem ser de interpretação demorada e às vezes enigmática", comenta Xavier, que aconselha logo em seguida: "Uma leitura lenta e meditativa gradualmente entrosa o leitor com a expressão de Montale." A praticidade e a visão realista que marcaram seus 85 anos de vida (ele morreu em 1981) foram devidamente lembradas no dia em que recebeu o Nobel, prêmio, aliás, que ameaçou diversas vezes não receber quando era um dos candidatos, mas que aceitou de bom grado quando foi aclamado vencedor. E, em seu discurso de agradecimento, aproveitou para fazer um resumo de sua filosofia de vida: "Ganhei um prêmio por escrever poemas. Mas fui também bibliotecário, tradutor, crítico musical e até desempregado, por não ser devidamente leal a um regime que não podia venerar. Uma jornalista me perguntou como conseguia distribuir tantas atividades. Tentei explicar que a vida deve ser planejada como um processo industrial. No mundo, há muito espaço ocupado pelo inútil."

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