Poema épico revive sonho da AL

O poema épico Latinoamérica, de Marcus Accioly, revive a antiga utopia do pan-americanismo. Mas, no mundo globalizado, os países latinos estão mais isolados do que nunca

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Latinomérica, o poema épico de Accioly, revive uma antiga utopia continental, a do pan-americanismo. Não o famoso A América para os americanos, da doutrina Monroe. O americanismo de Accioly é o dos "anti-heróis", Zumbi, Zapata, Tiradentes, Frei Caneca, Guevara Cuauhtémoc, Antonio Conselheiro, Chico Mendes. Entram também na composição do afresco artistas como Vinícius de Moraes e Tom Jobim, Violeta Parra, Geraldo Vandré, Chico Buarque de Holanda e Astor Piazzolla, Victor Jara e Luiz Gonzaga. Do Brasil ao México e à Argentina e Cuba, Accioly repisa o tema da identidade própria, sempre em crise por nossas carências e pela presença avassaladora da identidade alheia. O que há por trás da latino-americanidad é o sentimento difuso de pertencer a um todo, mais amplo e importante do que as fronteiras do nosso país. Borges, argentino de nascimento e universal de formação, e que está enterrado em Genebra, ironizava: não há latino-americanos; há argentinos, paraguaios, brasileiros. Assim como não há europeus; há italianos, ingleses, franceses, alemães. Vale como argumento individualista, mas muita gente pensa diferente. Um deles, conterrâneo de Borges, Ernesto Guevara de la Serna, estudante de Medicina que saiu de motocicleta pelo continente, aprendeu-lhe as mazelas e anos depois resolveu participar da aventura revolucionária em Cuba. Julio Cortázar, outro argentino, mas que nasceu na Bélgica e morreu em Paris, onde está enterrado, pensava diferente de Borges, a quem admirava e devia a publicação do seu primeiro conto. Cortázar vivia fora, mas tinha sentimento de pertencer a um continente dilacerado por contradições sociais. Esse tipo sentimento remonta a Bolívar e San Martín, que no século 18 sonharam com uma América hispânica independente e unificada. Mesmo século, convém lembrar, de Tiradentes e a Inconfidência Mineira. Esse anseio comum de libertação, de pertencer a uma realidade partilhada, viria a cristalizar-se nos anos 60. Formada por países agora politicamente independentes, a América Latina passava a ser percebida como vítima de outro tipo de dominação, a econômica. A palavra de ordem era então "descolonização". Tanto econômica quanto cultural, pois se percebia que estavam ligadas. No Brasil, multiplicam-se as manifestações culturais de cunho nativistas, afirmativas de uma cultura própria, ao mesmo tempo crítica em relação à dependência externa: Cinema Novo, o Teatro de Arena e o Oficina, música popular revalorizada, as atividades do CPC da UNE. São iniciativas em geral alinhadas à esquerda e muitas vezes se espelham no exemplo de Cuba, país que havia conseguido fazer a revolução em 1959, apesar de pobre e vizinho dos EUA. Há um movimento único que vai dos muralistas mexicanos aos cineastas brasileiros e implica a afirmação dos valores nacionais convivendo com um internacionalismo à maneira latino-americano. No cinema, em cada um dos países encontramos alguém sintonizado com essa perspectiva terceiro-mundista e latino-americana: Fernando Birri, Octavio Getino e Fernando Solanas, na Argentina; Glauber Rocha, no Brasil; Jorge Sanjinés, na Bolívia, Gutiérrez Alea, em Cuba. Glauber tinha o projeto de um filme chamado América Nuestra, que não saiu do papel. E foi no exílio, em Havana, que realizou a sua História do Brasil, em parceria com Marcos Medeiros. Na Argentina, Getino e Solanas chegaram a estabelecer as bases para um cinema descolonizado, chamado de Tercer Cine, projeto de linguagem própria, que incorporasse o barroquismo, as digressões e as carências de um continente que, achava-se, desejava se emancipar. Hoje, com as idéias de solidariedade internacional arquivadas, parece difícil imaginar que já houve algo como um sonho de união latino-americana. O intercâmbio foi deslocado para o domínio da economia, mas mesmo uma proposta modesta como a do Mercosul não se realizou e encontra-se fragilizada em função da crise econômica argentina. As trocas culturais com os países vizinhos são débeis, livros e obras circulam pouco, e os filmes atravessam muito mal as fronteiras. No mundo globalizado, esses países estão isolados como nunca. O espaço da utopia circunscreveu-se ao poema.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.