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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Pipi exceção

Atualização:

Meu filho faz 2 anos. Nos avisaram: vocês vão se divertir quando começar a falar. E não deu outra. Virou um tagarela. É o tagarela da escola e do prédio. Conversa com todos no elevador, para de chorar quando entra alguém e comenta algo, papeia com porteiros, dá informações, “sapato papai” (apontando para o croc que eu dei), “chuva naná” (informando que a chuva parou, foi embora nanar), “muito baiuiu” (apontando para o gerador do prédio). Sua sinceridade é comovente. Para uma segurança do shopping que perguntei com ele no colo onde era o banheiro infantil, ele disse fazendo careta “cocô fedido”.

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Pode estar num mau humor desgraçado. Mas se aproxima um adulto, ele abre um sorriso canastrão e diz coisas como “pintão guardado”. Logo traduzimos: “É, a pintura está guardada, pintou, e guardamos, né, filhão?”. Mentira, ele se refere ao seu pinto, o “pintão”. Culpa minha. Umas das diversões preferidas quando ele fica pelado, para o “baínho mamãe”, ou “baínho papai”, é correr atrás dele gritando: “Pintão, pintão, pintão!”. Ele gargalha e corre. Vamos até a varanda e gritamos: “Deem bom-dia ao menino do pintão”.

No período em que descobriu que podia tirar o pintão pra fora da fralda no meio da noite, irreverência masculina sobre a qual a psicanálise precisa se debruçar mais, começamos a doutrinar: “Pintão tem que ficar guardado. Pintão papai tá guardado. Você quer acordar toda mijado?”. E toda noite, o boa-noite virou: “Pintão guardado?”.

Minha didática é imprecisa e nada empírica como um bloco de carnaval sem alvará. Quando crescer, vou descobrir no que errei. De bobeira, passei a ensinar os nomes das cores verde, azul, vermelho, amarelo e laranja. Roxo é a mais difícil de falar e identificar. No começo, ele trocava o verde por azul, como eu; tenho um daltonismo leve que confunde as duas. Numa semana, aprendeu. Sua cor preferida, ninguém entende, é “amalelo”. Sonhando em voz alta, já o ouvimos repetir “busão amalelo, caminhão amalelo, avião amalelo”.

Na estrada, ele não dorme mais. Fica apontando: “caminhão lalanja”, “busão azul”, “caminhão sujo”, “caminhão muito sujo”, “motio” (moto)... Fica assim durante horas. E, apesar de também brincar de fogão, de cozinhar, ter ganho bonecas e um croc laranja pro rosa, que adora, seu fascínio é por busão, caminhão, avião, motio e foguete. Algumas reações são surpreendentes. Quando perguntei por que ele agora adquiriu a mania de abrir a geladeira e ver o que tinha dentro, ele respondeu: “Porque é bonita”. Quando o informamos que, como seus coleguinhas da escola, o Tomtom, que tem um irmão Gabriel, o Lucas e o Antônio, que tem irmãs, ele também ganhará um irmãozinho, apenas comentou: “Vixê”. Por vezes, ele vira para a mãe grávida de quatro meses, aponta para a barriga dela e diz “qué abri irmão”.

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Já me vangloriei quando ficou constatado que a primeira palavra que aprendeu foi “pai”, que virou “paí”, depois papaí”. Filmei, divulguei para amigos e me senti o papai mais premiado da Terra. Fazia sentido: eu o colocava para dormir todas as noites, só comigo ele conseguia dormir no colo. Na verdade, eu não tenho um dom mágico. É o motor da minha cadeira de rodas e os rolezinhos noturnos pela casa no meu colo que o faziam dormir. Já testei com bebês insones de amigo.

Então a grande verdade me tirou a arrogância. Segundo a ciência, e é sempre a ciência que estraga nossas suposições, bebês falam “papai” para no fundo provocar e chamar a atenção de quem? De quem realmente interessa, da mamãe.

“Tatai” foi a segunda palavra que falou. E durante meses só falava “tatai”. Tatai é ventilador. Descobrimos seu fascínio por eles, que dura até hoje, e o faz invadir classes alheias na escola para checar se o tatai deles funciona apropriadamente. Mas tatai é um pensamento abstrato. Aos poucos, descobrimos que tudo que tem potencial para girar é tatai. Rodas são tatais. Carros são tatais. Motos, não, motos são motios, e ele sempre nos corrige, como se fôssemos os mais ignorantes da cidade. Bicicleta não é tatai, é “peteia”, e ninguém sabe de onde tirou isso. Helicóptero é “petalo”, e eu sempre me esqueço que helicóptero é petalo, tenho que perguntar, ele faz “aff” e soletra pacientemente “pe-ta-lo”.

Música, ou “muta”, é sua grande paixão. Com iPhones, iPads e computadores pela casa, ele já sabe acessar o YouTube e escolher. Quanto está concentrado e quieto, pode contar, está vendo um clipe. Fizemos um acordo. Ao escutarmos uma música da dupla hipster Capital Cities, em que um trompete repete insistentemente pi-pi-pi-pi-pi-pi, falei para ele, que se não a encontrasse novamente, bastava falar pipi, que eu o ajudaria.

Coldplay é sua atual banda favorita. “Matato” é a música Adventure of a Lifetime, novo hit em que macacos dançam. Música da Peteia do Chatoplay é Paradise, em que Chris Martin anda de monociclo pela África. Pipipapi, sua atual música favorita, é In My Place, que começa com um solo de bateria pi pi pa pi, pi pi pa pi... Que diz quando escuta: “Muta bonita”.

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Meu filho entra na onda Muppets. “Opotite” é a sensacional música Oposite, groove do personagem Animal, baterista selvagem, “um percussionista enlouquecido com três estilos de música, alto, mais alto, e ensurdecedor”, que ensina opostos (up and down, far and near, loud and soft).

Cada música tem um código. “Tol” é Sol e Lua do Pequeno Cidadão. “Tavalo” é o megassucesso Lean On, do Major Lazer, em que aparecem cavalos. E Pipi Exceção... Demoramos um tempo para entender. Como meu filho aprendeu uma palavra que muitos não sabem soletrar? Ele ficava muito irritado por não conseguir se comunicar. “Pipi Exceção!”, pedia. Passamos dias tensos. O mau humor se generalizou. Até cair a ficha. Queria a música Safe and Sound, da dupla Capital Cities. Pipi Safe and Sound. E a paz voltou a reinar.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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