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PINTOR DA LUZ E DAS TREVAS DA ALMA

Por BOOKFORUM , JOSEPH LUZZI , PROFESSOR ASSOCIADO DE ITALIANO e DIRETOR DO PROGRAMA DE ESTUDOS ITALIANOS DO BARD COLLEGE. É AUTOR DE ROMANTIC EUROPE AND THE GHOST OF ITALY (YALE UNIVERSITY PRESS)
Atualização:

JOSEPH LUZZIPróximo do fim da vida, Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) entrou numa igreja na Sicília e foi espargido com água benta. Caravaggio perguntou que bem faria aquilo, e a resposta foi que ela apagaria os seus pecados venais. "Então é inútil", respondeu, "porque os meus são todos mortais". Como muitas informações sobre o artista, este relato também pode ser uma meia verdade, talvez apenas mito. Mas ele dá uma ideia do caráter contestador do pintor e o seu fatalismo resignado e faz alusão à fonte da sua intransigente visão estética. Num quadro de São João Batista (pintado pouco antes de Caravaggio cometer um crime em Roma), o artista retrata não a imagem de um beato, mas a face carrancuda de um homem solitário. Em sua nova biografia do pintor, o jornalista e crítico Andrew Graham-Dixon descreve São João Batista de uma maneira que se ajusta bem ao pintor: "São João está numa atitude soturna e introvertida, perdido nos seus próprios pensamentos dominados pelo desprezo do mundo".Se Caravaggio de fato menosprezava o mundo, esse sentimento, com frequência, era recíproco. De acordo com um dos seus primeiros biógrafos, Giovanni Pietro Bellori, este outro Michelangelo (nascido sete anos depois que o seu mais famoso homônimo faleceu), "carecia de invenzione, decoro, disegno, ou conhecimento da ciência da pintura". Publicada em 1672, essa avaliação é típica da recepção negativa da obra de Caravaggio até sua reputação ser ressuscitada na metade do século 20. Caravaggio sempre foi admirado pelo seu realismo sedutor, mas, como escreveu Bellori, "o momento que o modelo era tirado dele, suas mãos e sua mente ficavam vazias". Graham-Dixon escreve que esta ênfase na falta de habilidades de pintura de Caravaggio contribuiu para a reputação do pintor como "uma espécie de câmera humana", que meramente copiava a natureza.Mas muitos artistas sabiam melhor. Caravaggio rapidamente conquistou muitos pintores que o seguiram, por toda a Europa, conhecidos como os caravaggisti e mais tarde influenciaria mestres como Delacroix, Manet, Rubens, Velásquez e Vermeer, para nomear apenas alguns. Apesar do profundo impacto do seu estilo visual, seu modo de vida e o seu tratamento de temas religiosos provocaram tanta controvérsia que grande parte do seu trabalho ficou esquecida durante quase quatro séculos, até uma exposição, em 1951, organizada pelo historiador de arte Roberto Longhi. Desde então, os estudiosos de arte têm elogiado a importância de Caravaggio como um precursor da modernidade, um pioneiro cujo realismo à toda prova capta os conflitos, emoções e as energias sexuais da vida terrena, ao mesmo tempo que evoca os temas espirituais mais sublimados. E diversas coleções recentes das obras completas do pintor, juntamente com exames profundos e esclarecedores das suas pinturas (como o estudo absorvente de Michael Fried, de 2010, The Moment of Caravaggio) vêm colaborar para um conhecimento mais profundo sobre o artista.Embora hoje poucos duvidem da eminência de Caravaggio, durante um longo tempo mesmo aqueles convencidos do seu gênio consideravam a sua obra perturbadora. Para o historiador Bernard Berenson, Caravaggio só perde para Michelangelo em termos da influência sobre artistas mais recentes, mas ele diz não conseguir suportar o que, num estudo feito em 1953, chamou de "incongruência" entre os temas religiosos e suas formas seculares na obra de Caravaggio. E, como E.H. Gombrich escreveu, numa crítica ao livro de Berenson, o pintor foi por muito tempo considerado um "espantalho" de "sinistra reputação", devido, em grande parte, aos seus primeiros biógrafos, que "apresentaram esse gênio violento como um perigoso subversivo".O número de estudos mais modernos sobre Caravaggio é impressionante, quando nos damos conta de quão poucas evidências ele ter deixado e o fato de as fontes biográficas contemporâneas serem pouco fidedignas, e, como escreveu em 2000 o biógrafo Peter Robb, "dificilmente contendo uma palavra que não esteja marcada pelo medo, ignorância, malícia, ou interesse pessoal". Graham-Dixon corrobora a observação de Robb, comentando que muito do que sabemos sobre Caravaggio provém de transcritos de tribunais e registros criminais.A biografia do pintor, que Graham-Dixon levou uma década para concluir, distingue-se das precedentes em alguns aspectos importantes, o que a torna um grande lançamento nesse âmbito de estudos de Caravaggio. Ele insere material de arquivos descoberto recentemente para escrever a mais plausível narrativa de fatos mesmo nebulosos, incluindo o homicídio cometido pelo pintor, seu exílio e sua morte. A força do livro repousa não apenas nas suas novas descobertas, mas na sua habilidosa síntese das fontes existentes. (...) Graham-Dixon cuidadosamente procurou abranger um extraordinário espaço de terreno crítico, oferecendo um novo mapeamento muito necessário da vida do artista. E cria também um contexto convincente para compreender Caravaggio pela reconstrução, ricamente pesquisada, do meio em que o pintor vivia - e juntamente com o conhecimento enciclopédico da obra do artista, permite que Graham-Dixon nos ofereça hipóteses fascinantes sobre os aspectos mais inescrutáveis da carreira e crimes de Caravaggio. Há registros escassos da juventude do artista na Lombardia e em Milão, mas Graham-Dixon descreve o ambiente abrasador da Contrarreforma no norte da Itália - uma experiência que moldou a estética de Caravaggio. O renascimento católico conduzido pelo arcebispo de Milão, Carlo Borromeo, deixou suas marcas por toda a parte na cidade natal de Caravaggio. No monumental romance de Alessandro Manzoni, escrito em 1827, I Promessi Sposi (Os Noivos), Borromeo é retratado como uma combinação virtuosa de piedade e sagacidade empresarial. Graham-Dixon dá mais textura à imagem hagiográfica mostrando o fervor de Borromeo: "Carlo Borromeo... via (Milão) como o próprio microcosmo do mundo, um lugar cambaleante à beira da condenação, onde pululam pecadores a serem convertidos e almas a serem salvas... Borromeo levou a Milão da infância de Caravaggio a paroxismos regulares de arrependimento em massa".Caravaggio jamais pintou esse homem "descarnado, o rosto cavado, de uma severidade carismática", mas, segundo Graham-Dixon, o prelado teve uma importante influência na arte do pintor. Borromeo produzia espetáculos suntuosos em que os princípios bíblicos eram traduzidos em reconstituições teatrais e manipulava brilhantemente a iconografia do catolicismo. As telas posteriores de Caravaggio teriam muito desse mesmo efeito.Graham-Dixon postula que, com "a imaginação espetacularmente visual de Borromeo", a tradição local do sacro monte, o conjunto de capelas nas encostas que estão repletas de representações de arte popular da pompa cristã, provavelmente nutriram a estética sombria de Caravaggio: "A inclinação de Caravaggio para entrar em detalhes viscerais, horripilantes - por exemplo, o seu retrato do sangue que jorra da cabeça do tirano em Judith e Holofernes... testemunha de maneira viva a afinidade entre sua arte e o espetáculo turbulento, sangrento, popular, do imaginário do sacro monte". Graham-Dixon escreve que, ao ter a coragem de ignorar a gloriosa herança da Renascença italiana e se inspirar nas formas de arte popular como as do sacro monte, Caravaggio pode ter sido "o primeiro primitivista consciente em toda história da arte ocidental pós-clássica", uma visão que, ele acredita, foi forjada no imaginário humilde e puro da Contrarreforma na Lombardia. (...)Caravaggio viveu grande parte da sua vida quase à margem da sociedade, cercado por pessoas pobres e comuns. Ele pintou essas pessoas, representando as histórias da Bíblia com o corpo e rosto delas. Pintou para elas e a partir da perspectiva delas. No final morreu e foi enterrado entre elas, numa sepultura sem nome. Ele tinha 38 anos de idade.O livro também procura oferecer uma versão definitiva do que foi outrora uma obsessão nos estudos sobre Caravaggio: saber se ele era, ou não, gay.O crítico Howard Hibbard enfatizou (injustamente, na opinião de Graham-Dixon) os temas e motivos homossexuais do pintor em sua análise estética, de 1983, como também o fez o estudioso alemão Herwarth Röttgen, numa monografia publicada em 1974. Como observou Helen Landon na biografia do pintor assinada por ela e publicada em 1999, os elementos homoeróticos na obra de Caravaggio inspiraram o poeta Thomas Gunn para descrever uma das suas pinturas, A Conversão de São Paulo (1600), como reveladora de uma "candura e um mistério que se alternam sob a pele", mas alertou que uma interpretação do pintor à luz de uma presumida homossexualidade está cada vez mais desacreditada. Com o mesmo ceticismo, Graham-Dixon diz que Caravaggio provavelmente era bissexual, mas descarta a importância de saber quem foram suas escolhas para se deitar, escrevendo: "A ideia de que ele foi um dos primeiros mártires das insinuações de uma sexualidade pouco convencional é uma ficção anacrônica".No geral, Graham-Dixon compõe com destreza um retrato cativante de Caravaggio a partir de testemunhos, registros policiais e relatos ambíguos de indivíduos que o artista conheceu e, em alguns casos, prejudicou. O cuidadoso exame pelo autor das evidências e a síntese que faz de trabalhos anteriores sobre o pintor judiciosamente discrimina o que são rumores e o que são fatos, reconstruindo com autoridade a vida de Caravaggio. E mais importante, não perdeu de vista as grandes realizações do artista. As pinturas assumem o papel destacado que merecem, e em seus comentários o autor jamais despreza o impacto emocional da arte.A biografia produzida por Graham-Dixon esclarece de modo brilhante a vida de um artista que não foi menos misterioso do que suas telas - um homem capaz de cometer um assassinato e também criar a beleza inefável. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO©Bookforum, set/out/nov 2011, "Dark Night of the Soul", por Joseph LuzziA tela Judith e Holofernes: afinidade com o espetáculo turbulento

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