Pinacoteca traz Kurt Schwitters, criador da instalação

Mostra reúne 120 obras do artista alemão (1887-1948), que marca a criação pop e conceitual

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Por Antonio Gonçalves Filho
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O artista alemão Kurt Schwitters (1887-1948) entrou para a história da arte com o injusto epíteto de ovelha desgarrada do dadaísmo. Os próprios dadaístas viam Schwitters como um pequeno burguês tentando chocar outros burgueses escandalizáveis. Dadaístas eram os berlinenses. Schwitters era apenas um artista de Hannover posando de revolucionário. Nada mais injusto. Uma exposição retrospectiva com 120 obras suas, que a Pinacoteca do Estado inaugura nesta terça, 16, dá uma dimensão mais justa do que representou a atuação do artista na Europa dos anos 20 quando, dividido entre o rigor dos construtivistas russos e a provocação dadaísta, Schwitters escolheu ficar com os dois.   Galeria de fotos   Agora, os brasileiros vão poder atestar que o talento visionário do alemão foi além da negatividade dadaísta, antecipando em décadas alguns dos procedimentos hoje incorporados por artistas contemporâneos, entre eles a colagem, a instalação e o uso de materiais rudimentares na criação de obras artísticas.   Não fosse por esse motivo, a exposição já seria importante por outro. Há 46 anos São Paulo não via uma obra de Schwitters. A última vez que os paulistanos passaram os olhos numa de suas históricas collages foi na VI Bienal Internacional de São Paulo (1961). Raras nos museus brasileiros, apenas uma obra sua pode ser vista no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de São Paulo. Pensando nisso, o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha e o Instituto Goethe de São Paulo resolveram em parceria reunir as 120 obras das coleções do Museu Sprengel de Hannover e da Fundação Kurt e Ernst Schwitters, os dois organizadores da mostra que marca o início do Kulturfest, festival dedicado às artes (cinema, música, dança, artes visuais) promovido pelos institutos Goethe do Brasil até 2 de dezembro.   Panorama da carreira   A seleção traz exemplares de todos os períodos do artista, entre desenhos, collages, assemblages, esculturas e até uma réplica do Merzbau, obra-chave concebida antes que a Alemanha mergulhasse em seu pesadelo, testemunhando a ascensão de Hitler ao poder, e destruída num bombardeio aéreo, em 1943. A palavra Merz é uma espécie de pedra de toque na obra schwittersiana, extraída de um fragmento de jornal com a palavra Kommerz. Ironia. Provavelmente vinha de Kommerzbank, banco comercial, indicando sua resposta aos dadaístas, que o consideravam burguês, embora Hans Arp tenha sido o primeiro a persuadir Schwitters a abandonar a academia. Merzbau foi o centro da criação desse mito pessoal. Nasceu no próprio estúdio do artista.   Nessa protoinstalação, que começou em 1923 e passava por todas as paredes do mesmo, collages e assemblages unidas por fios de arame e cordas desciam as escadas e tomavam toda a casa. Schwitters juntou a ela um bizarro conjunto de objetos achados, presenteados por amigos ou desprezados por artistas, antecipando em muitas décadas o site specific e as instalações de Tony Cragg (não se deve esquecer que o escultor inglês vive em Wuppertal e conhece bem a arte alemã). Antes de Cragg, outros beberam na fonte de Schwitters. O pintor pop Rauschenberg foi um deles. Nos anos 1960, ele grudou objetos à tela numa típica solução neodadaísta, guardando muito da ironia das collages de Schwitters e, por conseqüência, absorvendo delas seu caráter paradoxal.   Schwitters era epilético e introvertido. Seu trabalho cria um jogo enigmático, ao provocar associações perturbadoras. Carrega uma tensão interior, oscilando entre o abstrato e o real e anunciando a sociedade do desperdício que surgiria no pós-guerra. Obra de um visionário, o verdadeiro realista.   Réplica de Merzbau   O sagrado, para Kurt Schwitters, estava ligado intimamente à noção de realidade. Ou estava aqui ou não estava em lugar nenhum. Tudo o que era sagrado para ele, dizia, estava em sua instalação Merzbau, cuja réplica pode ser vista, a partir de hoje, na Pinacoteca do Estado. Como se disse anteriormente, ela foi destruída durante um bombardeio na 2ª Guerra, cinco anos antes da morte do artista alemão. Schwitters já se encontrava na Inglaterra, onde morreria cinco anos depois, em 1948, sem nunca mais ver a obra que ele mesmo classificou de "autobiografia construída". À maneira do homem de teatro Antonin Artaud, para Schwiters não havia separação entre arte e vida. Sua Merzbau era uma espécie de catedral gótica construída para uso pessoal.   Essa não é uma interpretação crítica. É um testemunho pessoal do artista, inscrito num texto intitulado Ich und meine Ziele (Eu e Minhas Metas), de 1931. Nele, Schwitters explica o processo embrionário do Merzbau, cujo centro é uma simbólica coluna que cresce como uma árvore invadindo todos os oito cômodos do estúdio do artista, no número 5 da Waldhausenstrasse, em Hannover, crescendo indefinidamente em direção ao céu como a coluna infinita de Brancusi. Quando o artista partiu para a Noruega, em 1937, não conseguindo visto para os Estados Unidos, essa coluna - que ele chamou de Säule des erotischen Elends (Coluna da Miséria Erótica) - já havia invadido o teto e o balcão no andar térreo.   Por que uma fálica coluna com um comentário erótico era associada no texto a uma catedral secular de inspiração gótica é assunto para psicanalistas, mas é provável que Schwitters não encarasse sua instalação como uma manifestação de caráter puramente formal. Tanto que, entre os nichos que abrigavam os objetos doados por amigos, havia espaço para artistas visuais como Hans Arp, escritores como Goethe e arquitetos como Mies van der Rohe, além de uma curiosa caverna dedicada à memória de assassinos (os nazistas?). Reminiscências pessoais misturam-se, enfim, às históricas nessa protoinstalação que inspiraria, décadas mais tarde, os ambientes penetráveis criados pelo brasileiro Hélio Oiticica na época do tropicalismo, isto é, nos anos 1960.   Kurt Schwitters - O Artista Merz. Pinacoteca. Praça da Luz, 2, 3324-1000, metrô Luz. 3.ª a dom., 10h às 18h. R$ 4 (sáb. grátis). Até 2/12  

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