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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Pessoas baldias

Há mais de 20 mil moradores de rua em São Paulo, expostos ao frio, à violência

Atualização:

Moro em São Paulo e aqui é impossível andar pelas ruas da cidade sem me deparar com outros moradores da cidade: os que vivem nas ruas. Como eles chegaram ao ponto em que estão?

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A resposta para essa pergunta é a chave de acesso a todos os debates existentes no País. Os sentidos generalizantes e essencialistas fluem cheios de autoridade: “O brasileiro é”, “o brasileiro gosta”...

Um liberal poderia falar que o morador de rua, como indivíduo, faz suas escolhas e elas podem ser boas ou ruins. Uma sucessão de más escolhas pode levar alguém às ruas. Sair de lá, depende de oportunidade e novas opções – dessa vez, boas, assim esperamos. Viktor Frankl, psiquiatra austríaco (que não era um liberal), escreveu logo após a Segunda Guerra que cabe ao indivíduo escolher cada ato em sua vida e que nosso repertório de escolhas compõe quem somos. Se somarmos a isso a ideia freudiana de pulsão de morte, nosso impulso que pode gerar destruição e autossabotagem, talvez tenhamos a explicação de por que mais da metade dos moradores de rua paulistanos a quem foi dado um emprego no ano passado, o abandonou em pouquíssimo tempo.

Posso invocar a posição sociologizante mais à esquerda: “Nosso capitalismo, como todo o capitalismo, é excludente e produz os moradores de rua”. Nessa explicação, diminui o indivíduo e crescem as circunstâncias perversas que advêm de um sistema que concentra riquezas e segrega da renda a maioria que a produz. Abaixo dos que estão abaixo, os moradores de rua. A solução passa pelo reajuste do Estado: políticas inclusivas e de cuidados sociais, redistribuição de renda e taxação das grandes fortunas e dividendos. Mais uma vez, coloquemos o argumento de “meme” no microscópio e vejamos seu potencial. Marx fala mesmo em circunstâncias, mas também em agência. Leitor de Hegel, postula que os agentes fazem escolhas dentro de circunstâncias que não escolhem. De fato, o pensador alemão destrinça o capitalismo industrial de sua época como poucos e, mais uma vez correto, esse sistema é produtor de desigualdades e exclusão. O problema é que, historicamente, desconhecemos sistemas que não tenham excluído muitos e produzido privilegiados, sejam ricos ou membros do partido comunista. 

Há o moralista-histórico-conservador: morador de rua não é problema meu, pois sou um cidadão de bem e temente a (um) Deus (desconhecido dos evangelhos). É vagabundagem, dizem. Querer que o Estado interfira nisso é gastar meu dinheiro em algo tão inútil quanto arar o mar. Pensar que o Estado deve resolver as coisas é coisa de esquerdista ou fruto de uma sociedade patrimonialista na qual ninguém se sente responsável pelas suas coisas e que espera tudo do ubre estatal. 

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Um último suspiro simplista: o problema é cultural, não há mendigos japoneses. Dados oficiais dizem o contrário: são mais de 5 mil, homens em sua maioria, mais de 40 anos, que já tiveram emprego e renda. Escondem-se e têm vergonha da situação, por vezes recusando ajuda com altos índices de suicídio.

Saiamos da gaiola dos papagaios. Existem cerca de 20 mil moradores de rua em São Paulo, provavelmente bem mais. Para que esse número ganhe dimensão, trata-se de uma cidade como Aparecida do Taboado (MS) ou Apiaí (SP). Em sua maioria, são homens e cerca de 40% são ex-presidiários. O dado faz mais sentido quando entendemos a situação de quem sai do sistema carcerário no Brasil. Muitas das mais de 100 mil pessoas que, anualmente, voltam à sociedade depois de algum tempo encarceradas são obrigadas a pagar multa (se prevista na sentença condenatória) que varia entre 300 e 1.500 reais. Caso não seja quitada essa multa, a pena não é considerada cumprida, o que impede as pessoas de tirar documentos novos, por exemplo. Tente arrumar um emprego sem documentos e veremos o que é a situação de clandestinidade. 

As estatísticas falam que 30% dos moradores de rua têm problemas com depressão, outros 57% consomem álcool diariamente e 52%, drogas. Essas porcentagens podem se entrelaçar: não é raro uma pessoa depressiva consumindo drogas e álcool. Esses problemas causam a ida para a rua ou são consequência dela?

Censo de 2015, obviamente defasado, revela-nos que mais de 8 mil pessoas dormem em abrigos todas as noites. O estabelecimento não é um hotel e as pessoas esbarram em questões desconhecidas para nós. Havia/há obrigações do banho frio, não poder levar suas coisas ou a impossibilidade de ficar com seu cachorro, companhia e guarda fundamental para muitos moradores de rua. Ou outros 12 mil ou mais, literalmente, dormem nas ruas, sem banheiro, passando frio, expostos à violência, sem posses ou bens fixos. Nossas cidades têm terrenos baldios e humanos baldios.

Um emprego! Talvez seja essa a solução, nem que fosse um “bico”. Cerca de 74% da população de rua trabalha em “bicos” e serviços informais. A renda não é suficiente para alugar um teto, contudo. 

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Tenho que me render aos fatos. Embora possa haver um quinhão de mendigos por opção ou que esnobariam uma chance de uma vida melhor, discutir políticas inclusivas sem entendê-las é complicado. Se eu não tivesse problemas com a lei, mantivesse os documentos e a saúde mental e física, arranjasse emprego e moradia, não bebesse ou usasse drogas, sairia das ruas, certo? Bem, se estivesse com tudo tão em ordem, não iria para a rua... Vimos que não é bem assim. Parece mais fácil parar nas ruas que sair delas. Há questões psíquicas, sociais, culturais e casos individuais que se entrelaçam no caminho que leva à rua. Bom domingo eleitoral para todos nós. 

Opinião por Leandro Karnal
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