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Perdido entre achados

No sufoco para achar alguma coisa que sumiu, você pode encontrar até o que não perdeu

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Faz mais de uma semana que venho revirando a casa, atrás de um documento que me emprestaram e preciso devolver.

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Quem já esteve na barafunda do meu escritório poderá dizer que jamais conseguirei achar aqui o que quer que seja. Diante do caos, admito, do aparente caos, retifico, inútil tentar convencer alguém de que tenho razoável controle sobre o cafarnaum de meus papéis.

Não sou um prodígio de organização – um Fernando Sabino, por exemplo, que se gabava de poder localizar em até 40 segundos o menor papelucho em seus guardados. Certa vez o desafiei, e ele não precisou da metade disso para sacar um sexagenário recorte de jornal.

Claro que não chego a ser, nesse particular como nas letras, um Fernando Sabino – mas sempre dei conta de achar, ao preço de eventual sufoco, qualquer coisa que tenha guardado, e olha que sou desde sempre um guardador. A memória, lembro-me bem, já foi melhor, e se hoje rateia, ainda é capaz de devolver-me gordas fatias de passado. Só não vou à demasia retórica de certo camarada meu, que ouvi lamuriar-se em mesa de boteco, ao lhe doer o cotovelo:

– Onde está o Alzheimer, que não vem e apaga essa criatura?

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E agora esta: cadê o bendito, o maldito papel? Exumei dos armários pastas e mais pastas, certo de que a qualquer momento toparia com o objeto de minha busca. Cultor da mania de “esquecer” recortes e anotações entre páginas de livros, pelo gostinho de reencontrá-los por acaso, inutilmente folheei, entre nuvens de ácaros, boa parte da minha biblioteca, confiante numa lógica insondável que tivesse levado o dono a guardar determinada coisa em determinado lugar.

Não só prazer. Numa dessas, ruborizei-me a sós ao topar com uns versos que perpetrei em mal de amores nos remotos 20 anos, inspirados por musa que em matéria de louvor & rancor mereceria mais. Ou, ainda mais antigo, o rascunho de veemente exposição de motivos com que busquei calçar junto a meus pais uma reivindicação de aumento de mesada, não me lembro se atendida ou não.

Em desespero de causa, o ateu empedernido acabou por se render à sugestão oferecida por almas boas, e, ajoelhando-se no milho, humildemente recorreu a São Longuinho – para constatar uma vez mais que Deus pode até não existir, mas é justo.

Em compensação, tudo o que não era dado por sumido apareceu. Anotações descabeladas que tomei, décadas atrás, ao impulso de sabe-se lá qual aditivo. Coisas que nem sequer sabia possuir, como um maço de poemas do francês Verlaine traduzidos para o espanhol. Ou A Divina Comédia no original, num voluminho encadernado que o jovem Hélio Pellegrino ofereceu ao cupincha Etienne Filho, uns 80 anos atrás, relíquia autografada que por algum motivo veio dar na minha sesmaria.

*

Foi, aliás, com realismo ditado pela recomendação de Dante Alighieri – deixai toda esperança, ó vós que entrais! – que hoje de manhã decidi fazer um derradeiro mergulho na papelada, desta vez numa caixa abarrotada de cartas. Esforço já de saída perdido, eu sabia, pois o que sumiu recentemente não poderia estar naquela maçaroca há muito não revisitada. Um Himalaia de envelopes que jamais consegui botar em ordem, visto que a cada tentativa meu empenho de organização se dispersa na leitura de uma carta aqui, um cartão ali – e, quando vejo, horas se passaram e mal saí da estaca zero.

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Desta vez, escaldado, me imbuí do pragmatismo dos desesperançados e deliberei não me deter no conteúdo de um envelope que fosse, apenas dividir a correspondência em pilhas de remetentes. Só eu sei o me custou passar batido, entre outros achados, por três cartas da Graziela, a carioquinha para quem, numas férias em Araxá, arrastei aos 15 anos minha asa adolescente.

Feitas as pilhas, pareceu-me boa ideia acondicionar cada uma num envelope – e lá fui eu ao quartinho dos fundos, onde jaz obesa bolsa com embalagens de papel e plástico, recipientes que a previdência materna me ensinou a não botar fora, o que sigo fazendo, mesmo que só muito raramente tenha recorrido a tal reserva.

Estou eu catando sacolinhas de papel – e adivinha o que me aparece numa delas?

Alegrão sem tamanho, desproporcional talvez ao achado, e um tanto de vergonha de um miolo mole capaz de permitir que algo importante tenha ido parar naquele amontoado de irrelevâncias.

Foi nesse estado de espírito que vim arrematar a crônica, providenciando para ela um happy end, após o que irei me esbaldar na releitura de cartas que, em última análise, a minha falta de cuidado com um documento fez ressuscitarem. Valeu a pena, exulto eu, já esquecido da agonia que por muitos dias me infelicitou. E mais não digo, pois estou a pique de recomendar a você que perca alguma coisa, perca sempre, só pelo prazer de achar, achar até aquilo que não estava procurando.

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