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Luzes da cidade

Perdendo a voz

Acordei coberta de suor de madrugada. Estava cansada do impasse que acontecia num sonho e alguma região no sótão do meu cérebro interrompeu o sono para por fim à angústia. Os personagens eram velhos conhecidos. Estavam furiosos comigo por causa de um e-mail enviado sobre o assunto mais mundano possível. A recipiente, uma artista, interpretou a mensagem como um pedido disfarçado para obter uma obra sua com desconto. Fiquei mortificada, reli o e-mail e não sugeria isso, mas minhas explicações de nada adiantavam. Quanto mais eu falava, a indignação das pessoas à volta crescia. Como nestes sonhos em que você corre e não sai do lugar.

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

No escuro do quarto, eu me censurei: devia ter telefonado para evitar o mal entendido. Para, em seguida, cair na risada, não se telefona para personagem de sonho.

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Espere aí, não se telefona mais, ponto. Uma geração chega à idade adulta sem falar até mesmo com quem está a metros de distância. Volta e meia, testo esta marcha para a obsolescência das cordas vocais dando um telefonema. E confesso me divertir com a surpresa, até a clara exasperação da pessoa do outro lado da linha. Mesmo ela, se está sentada num escritório, ociosa, e sua função é atender o público.

Como o funcionário de uma corporação digital. Fui convidada para uma sessão grátis de orientação sobre designs de website. Sabemos que não existe o grátis, a intenção da empresa é me fazer mais ativa e pagar uma alta taxa de manutenção mensal.

Durante a meia-hora com o especialista que supostamente quer me fazer comprar serviços, chegava a duvidar se estava falando com alguém ao vivo ou se dialogava com um software programado para responder perguntas de maneira genérica. O rapaz obviamente entendia tudo de linguagem HTML e detalhes técnicos, mas interagia comigo como um robô. Um robô intimidado pela estranha proximidade da voz. Às vezes, angustiada com as pausas, perguntava, estou fazendo algum sentido pra você? “Com certeza”, ele respondia lacônico e sem convicção. Percebi que o diálogo teria sido muito mais loquaz via SMS.

A mensagem de texto é o modo predominante de comunicação e vai eliminando o e-mail, cujo formato ao menos exige um grau mais alto de coerência. Concordo com linguistas que consideram a mensagem de texto uma forma de escrita. As frases curtas teriam muito mais erros gramaticais, não fossem os auto-corretores. Mas há uma diferença no fluxo de diálogo escrito entre pessoas que têm passado analógico, de presença física, e a troca entre quase estranhos.

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Noto que a mensagem de texto virou um território de falsa intimidade. Como sou frequentadora recente do Facebook, não sabia o quanto as pessoas usam a mensagem direta do website para se dirigir a estranhos. Do momento em que aceito ser “amiga” de alguém, posso ser destinatária de mensagens informais que vão do “visite minha página,” até a extraordinária desfaçatez de um sujeito que lançou uma revista digital e me escreveu uma mensagem sucinta pedindo um texto e dando logo o prazo. Pequeno detalhe: ele estava me recrutando para escrever de graça.

A falta de contato humano foi usada como tema de campanha publicitária de um grande banco americano. Aos clientes, cansados de interagir com zombies digitais, prometiam um serviço com funcionários de carne e osso.

Como uma expatriada com família em três continentes, sou usuária intensa da mensagem de texto. Mas não suporto grupos do WhatsApp porque pouco tenho a dizer para vinte pessoas ao mesmo tempo.

Sei que falo de um mal-estar da minha geração. Continuo a não abrir mão da voz, sabedora de que posso me esconder atrás do texto. Sei que uma geração verborrágica em caracteres e lacônica em pessoa não sente falta do diálogo vocal. Mas não sentir a ausência não é o mesmo que saber o que está sendo perdido.

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