Pelos cômodos da vida privada

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Por Elias Thomé Saliba é professor de Teoria da História na USP , autor , entre outros e de raízes do riso (Companhia das Letras)
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ELIAS THOMÉ SALIB AMorando numa casa da época vitoriana, Bill Bryson teve a ideia de viajar ao redor da sua própria residência, passeando de aposento em aposento e revendo as histórias associadas a cada um -, enfim, fazer uma história do mundo sem sair de sua própria casa. Longe, contudo, de uma imaginosa ficção literária - cujo paradigma clássico seria Xavier de Maistre, com sua Viagem ao Redor do Meu Quarto -, Bryson envereda por uma sondagem de alta qualidade histórica que resultou no Em Casa, uma breve história da vida doméstica, um livro que vai muito além do que promete o título. Por trás de uma história do conforto, das mudanças de hábitos domésticos e da adoção de novas tecnologias, vemos desenhar-se não apenas uma narrativa perspicaz da vida privada, mas também de momentos decisivos da história da cultura material e, sobretudo, do nascimento do consumo no século 19. A casa é um repositório complexo e caleidoscópico de muitas mudanças históricas que, exatamente por pareceram banais, revelam-se quase imperceptíveis. Estamos tão habituados ao conforto que esquecemos o quanto tudo isto é recente. Até o início do século 19, a ideia de ter conforto em casa era tão estranha que nem sequer existia uma palavra para expressar o conceito: "confortável" significava apenas "capaz de ser confortado, consolado" e "conforto" era algo que se dava "aos feridos ou aos angustiados". Embora o autor realize retrospectos distantes no tempo, retornando a achados arqueológicos pré-históricos ou aos romanos da antiguidade, ele acerta ao se concentrar no período no qual a vida privada vitoriana sofreu o impacto da revolução tecnológica na segunda metade do século 19. Quem nascesse em 1822, por exemplo, ainda viveria num mundo doméstico que tinha muito de medieval: luz de velas, casas sem encanamento ou esgoto, com piso de terra, mal recobertas por palha ou junco e numa total parcimônia de móveis e artefatos. Mas ao atingir a idade de 60 ou 70 anos, esta mesma pessoa já viveria num mundo doméstico e urbano totalmente modificado, com a introdução de uma maravilha após a outra: luz elétrica, encanamentos, refrigeração, pasteurização, fogão a gás, comidas enlatadas - e outros artefatos não menos indispensáveis, como os vasos sanitários, a descarga automática, o papel higiênico, as escovas de dentes e os dentifrícios, o sabão em pó, as bebidas engarrafadas e, por último, mas não menos importante, a caixa registradora! Bryson se detém ainda num artefato da casa no qual só prestamos atenção quando falta energia: a caixa de fusíveis, que ganha um capítulo inteiro com uma detalhadíssima e sensível história do impacto da eletricidade na vida das pessoas. Mas nem tudo é róseo no formidável caleidoscópio montado por Bryson. A partir da cozinha, ele também nos conta a história da deterioração dos alimentos, da fome crônica nos períodos de crises agrícolas, do sofrimento das criadas e da rígida estratificação de cada aspecto da vida cotidiana. Conta também a longa história da segregação dos aposentos que, no início, reduziam-se a uma grande "sala de estar", pois eram completamente destituídos de propósitos ou funções específicas. Antes da revolução oitocentista do conforto doméstico, a vida continuava mais coletiva e publicamente exposta do que hoje. Muitos relatos compilados pelo autor mostram sanitários domésticos com vários assentos para facilitar a conversação - e muitas gravuras descrevem casais na cama ou no banho em atitudes despreocupadas, enquanto seus atendentes serviam ou amigos sentavam-se próximos, sem nenhuma preocupação com a privacidade. Particularmente bem escrito é o capítulo sobre o "quarto das crianças", onde se desvelam todas as desgraças dos primeiros anos de vida, pois as raras crianças que conseguiam a façanha de sobreviver até os 3 anos transformavam-se logo em meras "unidades de produção". As ignominiosas (e bem documentadas) histórias dos meninos limpadores de chaminés, recrutados por serem pequenininhos e magrinhos, são estarrecedoras. Sintonizado com o que de melhor a historiografia já produziu e, contrariando a tese clássica de P. Áries, Bryson mostra que os vitorianos não inventaram a infância, mas sim a "desinventaram": ao negar afeto aos filhos quando pequenos, e depois tentar controlar seus comportamentos na idade adulta, os vitorianos adotaram a estranha (e neurótica) posição de tentar suprimir a infância e, ao mesmo tempo, fazê-la durar para sempre. Não surpreende, neste caso, que o fim da era vitoriana tenha coincidido, quase exatamente, com a invenção da psicanálise. Mas esta não é uma história apenas residual das muitas esquisitices arquitetônicas vitorianas. Lá estão os relatos de personagens vivos, dos obscuros aos mais notáveis, cujas vidas se cruzaram nesta longa e intrincada história dos confortos domésticos. Lá estão as incríveis histórias de Thomas Jefferson que, além de autor da Declaração de Independência, inventou as batatas fritas; do médico John Snow, que não só foi o pioneiro em aplicar anestesia (de clorofórmio) na Rainha Vitória, como relacionou o cólera com a água contaminada; de Joseph Bazalgette, que projetou a construção da rede de esgotos em Londres; ou ainda, a surpreendente narrativa dos manuscritos de A Revolução Francesa, do historiador Thomas Carlyle, inteiramente destruídos numa crepitante lareira da casa de seu "amigo" John Stuart Mill, que jogou a culpa, claro, na sua governanta.Longe daquela petite histoire anedótica e folclórica, Bryson mostra que a história do conforto e da vida privada resultou de um emaranhado de incontáveis trajetórias individuais; como já mostraram estudos recentes, uma revolução no consumo foi concomitante e, em muitos casos, precedeu a uma revolução tecnológica. E o conhecido adágio que dizia que "a necessidade é a mãe da invenção" ficaria bem melhor se invertido para "a invenção é a mãe da necessidade". O lar é repositório caleidoscópico de mudanças que se revelam quase imperceptíveis

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