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Pelo sim e pelo não

Tente imaginar: além do voto ‘sim’, o eleitor teria direito a um voto ‘não’

Por Humberto Werneck
Atualização:

O espetáculo de lambança cívica que boa parte da classe política brasileira não se cansa de encenar me faz outra vez pensar se já não passa da hora de levar a sério uma ótima ideia do escritor Cyro dos Anjos e instituir o voto contra. Dar ao cidadão o direito não apenas de eleger fulano, como já acontece, mas também – ou sobretudo – o de “deseleger” beltrano. 

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A sugestão do falecido romancista de O Amanuense Belmiro nasceu como brincadeira, na espumante irresponsabilidade de uma roda de chope (quem conta é Fernando Sabino), mas nem por isso deixa de fazer sentido: se as eleições existem para que possa cada um manifestar sua vontade política, por que limitar a liberdade a dizer “sim”, quando tantas vezes o que mais queremos é dizer “não”? 

A alternativa valeria também como recurso para recondicionar fígados intoxicados no fragor de uma campanha eleitoral sujeita a facadas e assolada por fake news. Não venha me dizer que você, democrata e tolerante, nunca teve, a certa altura do processo, vontade de dar uns cascudos no adversário, ou mesmo de beber-lhe o sangue. 

O voto “não” funcionaria, assim, como providencial válvula de escape para excessos de paixão. Um pouco, me ocorre agora, como a sequência que vi num velho documentário americano, na qual o motorista, estressado de tanto dirigir numa autopista de alta velocidade e agressividade ainda mais elevada, interrompe a viagem para um descanso – e no motel encontra, além de banho & cama, uma tela na qual, interminavelmente, se projetam cenas em tudo semelhantes ao tráfego vertiginoso do qual, sabe Deus como, o pobre diabo acaba de emergir. 

À mão, disponibilizada para esse fim pela gerência, uma cesta de frutas podres e potes de matéria malcheirosa que o sobrevivente pode – deve – atirar contra a tela, enquanto, no quarto à prova de ruídos, berra impropérios, até que baixe a fervura dos impulsos homicidas refreados. A casa proporciona limpeza no dia seguinte e, ao lado da cama, pastilhas para cordas vocais esfrangalhadas.

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Em quem você vai desvotar? – os amigos se perguntariam às vésperas do pleito. A chatice do horário eleitoral ganharia inesperado interesse quando na tela surgisse alguém para recomendar: “Vote ‘Não’ neste sujeito aqui!”. Numa lapela a gente poderia espetar um botton do candidato do nosso coração; na outra, o candidato do nosso fígado: “Este, nem pensar!” 

Tudo muito simples: você vai de Bolsonaro, eu vou contra, #eleSim, #eleNão. Nós dois nos anulamos. Muita briga conjugal seria evitada, já que ninguém levou. Feitas as contas, seria pelo menos engraçado constatar que, num universo eleitoral de dezenas de milhões de eleitores, o novo presidente da República chegou lá por 1 a 0. “Nunca antes neste país ou qualquer outro alguém venceu por margem tão apertada”, poderia ele se gabar. 

Não sendo proibido sonhar, o ideal, quem sabe, seria dispor de dois votos “não”, ainda que ao preço de sacrificar um voto “sim” – alternativa que tanta falta me fez naquela eleição para o governo de São Paulo em que na reta final tudo o que se apresentava ao eleitor era escolher entre Maluf e Fleury. Na falta de petardo em dobro, que no caso talvez pudesse ter impedido roubalheira e o massacre do Carandiru, eu me conformo em sonhar com um voto “sim” e um voto “não”. 

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Haveria, é verdade, a possibilidade de se registrar o que locutores esportivos chamam de “um pálido empate”. A contenda, nesse caso, seria decidida numa prorrogação eleitoral. E se, ainda assim, o impasse persistisse? Não dá para imaginar uma eleição decidida nos pênaltis, mas o legislativo, neste país de jabuticabas jurídicas, haveria de encontrar uma saída. Talvez um duelo na Praça dos Três Poderes, não estando excluída a hipótese, eventualmente bem-vinda, de que nenhum dos finalistas sobreviva.

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Em meio ao mandato, fosse ele executivo ou legislativo – e aqui vai mais uma proposta –, teria o cidadão a possibilidade de avaliar o desempenho de seu representante. Bastaria instituir também um recall eleitoral, em tudo semelhante aos que promovem as montadoras de automóveis. Com a diferença de que, não sendo possível substituir caráter como se faz com um cárter (aquela caixa, esclarece o dicionário Houaiss, “em que se aloja o virabrequim de um motor e onde, nos automóveis, é recolhido e esfriado o óleo aquecido proveniente de outras partes do motor”), seria preciso trocar o fulano – o que, na maioria dos casos, estaria longe de ser um mau negócio para o País. 

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