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Peixe fora do cardume

Desafio você a não deixar sem resposta a avalanche que nos chega pelas redes sociais

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Ou muito me engano (não, não me engano) ou já falei aqui do frei Benigno, carmelita que de benigno não tinha nada, ao contrário, até mereceria ser chamado frei Maligno. Se você me leu, e se leu e se lembra (algo ainda mais improvável, capaz de deixar qualquer autor de ego rígido), terá alguma familiaridade com o confessor em cujos ouvidos, peludos como ninho de beija-flor, um futuro cronista, então adolescente, ia despejar, semana sim outra também, seu caminhãozinho de pecados, a maioria deles “mortais”, desses que, a crer no que lhe aplicaram no catecismo, têm o poder de encardir a fundo a alma de quem os comete. Coisa do passado, informa uma querida amiga, e conta que hoje, quando se trata de zerar as contas com o Criador, basta participar de uma “confissão comunitária”, sem necessidade de vocalizar seus podres.

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Assim não era, infelizmente, no tempo em que, no auge da crepitação de meus hormônios, e sob pena de não poder comungar, eu precisava ouvir a voz macilenta do Benigno-com-aspas, coada pela treliça fina do confessionário, a me perguntar, suponho que desinteressadamente, se eu tinha pecado contra a castidade, quantas vezes, e, para humilhação maior, se o fizera sozinho ou se acompanhado. Cada palavra minha era por ele recebida com um gemido, no interior daquela soturna caixa de madeira, como se estivesse, o ímpio, a lhe espetar espinhos no alvo coração.

Nada mais tendo eu a confessar, vinha de lá, agora em tom farpado, a prescrição de uma penitência que a cada semana se tornava mais pesada – embora, curiosamente, os pecados seguissem sendo os mesmos. Dez ave-marias, depois um terço inteiro, mais adiante os três terços de um rosário, a serem rezados, não no automático, mas “com muito fervor” – que nem macarronadas, comparava eu, que só podem vir à mesa se regadas com suficiente molho. 

O incremento da pena era problema adicional para quem optara por se confessar durante a missa, na esperança de se habilitar à comunhão logo em seguida. O tempo entre o vai-com-Deus com que o Maligno me despachava, e a recepção da hóstia sagrada das mãos do celebrante, foi ficando cada vez mais insuficiente para tanta reza, a não ser que eu agilizasse o processo – o que não cheguei a fazer – recorrendo às aspas, ao idem e ao etcétera.

Tive que renunciar, também, ao perfeccionismo de quem, no começo, mal tendo abandonado o confessionário, a ele retornava para despejar malfeitos esquecidos na primeira rodada, ou simplesmente para burilar relatos, acrescentando-lhe pormenores pecaminosos – como faz um camarada de minhas relações, dado a atormentar a rotina de seus editores ao lhes enviar, com o aviso “vale esta!”, versões retocadas de escritos entregues minutos antes. 

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Em dado momento, passei a comungar por conta, deixando para depois a penitência. Mas esse depois, lá fora, era quase sempre um imperioso domingo de sol, a me solicitar com suas tentações terreais. Como resistir? Para não cair nas malhas de algum Serasa da alma, tive então a ideia de anotar num caderninho as penitências, comprometendo-me a pagá-las tão logo me fosse possível. Sentia-me assim parcialmente absolvido, como se levasse na canela uma modalidade espiritual de tornozeleira eletrônica. Mas a tal monta subiu meu débito com os Céus, que, um dia, por certo cometendo pecado adicional, resolvi declarar moratória. 

Conservei por algum tempo ainda, inumado nas profundas do guarda-roupa, o caderninho do meu deve-e-haver, ou melhor, de meu deve-e-deve, até me dar conta de que, mesmo dentro de uma caixa de sapatos, ele seguia aferroando minha consciência de inadimplente. Um dia, por fim, toquei fogo nele, depois de me dar conta de que a fartura de orações que meus pais e avós vinham rezando por mim, desde o nascimento, inviabilizava por completo qualquer possibilidade de vir a arder nos caldeirões do Inferno. Perdi a fé religiosa, mas nisto sigo acreditando. 

* A que vêm estas empoeiradas lembranças? Sua subida à tona tem a ver com a consciência plúmbea de quem já se julgava imunizado contra velhos sentimentos de culpa, supostamente dissolvidos em sofridas sessões de terapia e análise – e que, no entanto, hoje se vê em falta com um cardume de parentes, amigos e até desconhecidos, aos quais, nem sempre por vontade própria, acabou emaranhado nas redes sociais. Para dar conta da aluvião de mensagens que por ali me chegam no espaço de um dia, precisaria dispor de outras 24 horas. 

De todos esses remetentes me sinto devedor de alguma coisa – uma frase, uma palavra, um emoji que seja. Aniversários que passaram sem meus parabéns, agrados que deixei sem agradecimento, operações de amígdalas ou varizes que não teriam encontrado em mim um eco solidário, até mesmo farpas ou desaforos que não arrancaram aqui o esperado troco. 

É exasperador o plim do celular, ouvido a qualquer momento do dia e da noite, ao sabor das mais variadas insônias alheias, dos mais disparatados fusos horários, assim como a tela que se acende a cada mensagem que chega – eis aí uma avalanche de manifestações que em breve acabará por me precipitar em nova moratória. 

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Em breve, não: já. Aproveito a mudança de parágrafo para jogar a toalha, não sem deixar pedido de desculpas a tantas e tantos com quem, no real ou na imaginação culpada, me sinto em falta. Peixe pouco à vontade nas redes em que me deixei capturar, ponho-me de joelhos no milho eletrônico, e faço saber, a quem porventura se dê conta dele, que meu silêncio virtual não é omissão nem pouco-caso. 

É que ando, como se diz em Minas, apertado de costura – expressão que jamais ouvi pronunciada em São Paulo, no quase meio século em que vivo aqui. Tento mais uma vez: você vai à costureira, pedir barra no vestido ou calça, e ela faz saber que nesse prazo não vai dar, pois está – gesto abrangendo as prateleiras apinhadas – apertada de costura. Fazer o quê? Devo, não nego, pagarei um dia, assim que estiver mais leve a barra, aquela que não é da calça ou do vestido.

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