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Peça vê o Brasil sob olhar estrangeiro

A percepção estranha de um estrangeiro é o ponto de partida para a peça Um Porto para Elizabeth Bishop, de Marta Góes, baseando-se nos escritos da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop

Por Agencia Estado
Atualização:

O modo como as pessoas se cumprimentam, as roupas que vestem, a forma como organizam o espaço público e o privado, os gestos e as palavras por meio dos quais exprimem seus afetos são, mais do que um estilo de vida, a substância de uma cultura. As diferenças entre uma e outra cultura se manifestam no grande e no pequeno, nas formalizações institucionais e na vida miúda do cotidiano. Por essa razão, o olhar estrangeiro é tão interessante - porque, ao prestar atenção nos traços distintivos, ao comparar formalizações e significados, define a si mesmo e desenha um retrato possível da cultura estranha. É essa a perspectiva que Marta Góes adotou para construir o monólogo Um Porto para Elizabeth Bishop, em cartaz no Teatro Sesc Anchieta. Baseando-se nos escritos da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979), recorrendo a cartas, depoimentos e poemas, o texto recupera as imagens do País usando uma andarilha que aportou no Brasil por acaso e aqui permaneceu durante 15 anos. Há relatos amenos de convivência, experiências boas e más indicando uma adaptação gradual aos costumes e às pessoas, algumas reflexões de ordem geral comuns nos relatos dos viajantes que tendem a tomar a parte pelo todo. Coadjuvante - Elizabeth Bishop escreveu poemas no país que a hospedava, viveu aqui um prolongado caso amoroso e testemunhou, na esquiva posição de coadjuvante, episódios decisivos da nossa vida cultural e institucional. Olhou de longe o suicídio de Getúlio, o golpe militar de 1964 e seguiu de perto, por circunstâncias de vida, os planos para a remodelação urbanística do Rio de Janeiro, que culminariam no espetacular aterro do Flamengo. Mantendo distância prudente do dramalhão, a peça evita dar ênfase a episódios biográficos de empatia fácil, como o alcoolismo da escritora, ou aos percalços da vida amorosa. São dados informativos tratados de forma discreta, dramaticamente secundários. Regina Braga imprime à voz dessa personagem um persistente tom de inocência e espanto. Como artista, Elizabeth Bishop passou fatos e paisagens pelo filtro da sensibilidade. Como estrangeira, comparou nossos costumes com os de seu país de origem, relutou em aceitar hábitos, desfrutou da cordialidade das relações interpessoais e da beleza das celebrações coletivas dos cariocas. Alguns julgamentos apressados se dissolvem no fluxo das percepções, a experiência do novo vai se sobrepondo aos preconceitos, o afeto e os conflitos com a companheira brasileira tornam-se um fulcro de aclimatação nos primeiros tempos e desagregação no período final da estadia. Lastro comum - No espetáculo, contudo, só vemos a maturação da experiência nos poemas intercalados à prosa narrativa. A interpretação procura antes definir uma personalidade, conferir um lastro humano comum a essa estrangeira. Não há, na verdade, nada de especialmente agudo na reflexão de Bishop sobre os contrastes culturais. Há uma mulher de bons sentimentos e expressão delicada, um tanto quanto infantil, despida da presunção de compreender de um modo original o país que a acolhe. Essa simplicidade orienta a composição da personagem criada pela atriz. Talvez seja essa a interpretação sugerida pelas fontes utilizadas na criação da peça, mas, de qualquer forma, faz falta ao espetáculo um componente mais complexo, uma certa exaltação que permita entrever a artista rigorosa na personalidade representada. Sobre essa linha interpretativa, moldada sobre o verismo psicológico, é difícil alicerçar o caráter extraordinário da poesia e a dimensão, também extraordinária, dos fatos históricos que cercaram a vida sentimental da protagonista. Dirigida por José Possi Neto, a encenação é pontuada por alguns ornamentos de efeito plástico. Pequenas intervenções, como a presença da água, as helicônias entrelaçadas à geometria da arquitetura modernista, as projeções de documentos sobre o fundo do palco (pouco nítidas e mais evocativas do que informativas), funcionam para enriquecer visualmente a franciscana simplicidade do monólogo. As tonalidades do figurino e da cenografia são suaves transições entre o branco e o bege, traduzindo não só o esbatimento da memória como um discurso que observa, mas não se rende de todo, ao forte contraste da cultura exótica. Só há um momento de exaltação, quando a personagem esvoaça com um xale, mas é um vôo um tanto quanto desajeitado e não sabemos bem se expressa a incapacidade de Elizabeth de entregar-se às emoções ou a vontade do espetáculo de contaminá-la com o vitalismo tropical. Espaços - Na cenografia de Jean-Pierre Tortil, estão sugeridos os límpidos ambientes modernistas em que circulou a escritora norte-americana. São ótimas as soluções espaciais para indicar o estilo da casa serrana e bonitos os revestimentos que constróem o apartamento do Rio. Também aí não há nada de ousado em termos formais. O bom gosto, os bons sentimentos, um comprometimento moderado com a alteridade (sempre há o hiato carnavalesco) parecem ser os traços predominantes que o espetáculo reconhece na imagem do País fixada pela retina de Elizabeth Bishop. Deste espetáculo permanece a impressão de que as normas de polidez devem presidir ao diálogo intercultural. Um Porto para Elizabeth Bishop. De Marta Góes. Direção José Possi Neto. Duração: 1h30. De quinta a sábado, às 21 horas; domingo, às 20 horas. R$ 20,00 e R$ 30,00 (sábado). Teatro Sesc Anchieta. Rua Doutor Vila Nova, 245, tel. 234-3000. Até 5/8.

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