Será que os autos de um processo de Inquisição iniciado no Brasil, em 1546, podem ajudar a compreender o Brasil em que vivemos? A resposta pode ser positiva quando o processo se revela uma conspiração da Igreja, do Poder Judiciário e de alguns proprietários de terra contra o bem-sucedido donatário de uma capitania hereditária economicamente rentável e progressora. Essa foi a aposta da Companhia do Latão ao criar o Auto dos Bons Tratos, montagem em cartaz de sexta a domingo no Teatro Cacilda Becker _ depois de ter integrado, em março, a programação da mostra principal do Festival de Teatro de Curitiba. A peça foi criada a partir do auto de inquisição contra o donatário Pero do Campo Tourinho, acusado de blasfêmia. O objetivo do grupo foi revelar, na formação do Brasil, o embate entre dois tipos de dominação _ o autoritarismo que se impõe pela violência e um tipo de dominação no qual a autoridade fica oculta sob relações de proteção. "Queríamos falar sobre autoridade e partimos do estudo sobre o homem cordial, do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Queríamos criar uma dramaturgia que revelasse de que forma a violência da dominação vai sendo ocultada, no Brasil, por relações de intimidade e simpatia", diz Sérgio Carvalho, diretor da companhia."Sabe-se que no Brasil o patrão vira padrinho, a criada ´faz parte da família´, o empregado toma cerveja com o patrão. Mas essa ´cordialidade´ não implica necessariamente diferenças socioeconômicas menos brutais." O "achado" para explorar o tema de forma teatral veio quando a companhia descobriu um auto de inquisição contra Tourinho, o donatário da Capitania de Porto Seguro, da qual ele tomou posse em 1534. Ao contrário de outros donatários, ele consegue fazer a capitania progredir. Mas a partir de 1540, começa a ter sérios problemas com a Igreja, porque no afã de construir um engenho de açúcar, obriga os escravos _ que nesse período ainda são os índios _ e até mesmo os empregados brancos a trabalharem domingos e feriados. "O irônico é que ele é um homem moderno, num certo sentido, em revolta contra uma dimensão mais arcaica de trabalho. Revolta-se contra o excesso de feriados e antecipa o que será a maior receita da Colônia, as usinas de açúcar, mais tarde tocadas pelos escravos negros." Num domingo, ele invade a igreja para levar "seus índios" de volta ao trabalho. Nessa invasão, acaba levando também escravos de outros fidalgos. Pressionado pelo padre e por um juiz, resiste em devolvê-los aos seus legítimos donos. É a gota d´água para o início da conspiração. "Até mesmo um capitão do mato - caçador de escravos índios - rebela-se contra Tourinho", comenta Ney Piancentini, que interpreta um padre alcoólatra e internamente dilacerado por um conflito humano e moral na sua relação com os índios. "O capitão do mato argumenta que não é vantajoso pegar índios à força. É muito melhor ter relações cordiais com os chefes das tribos, porque eles fazem o serviço para os brancos, capturando índios de tribos inimigas." Turrão, defendendo com unhas e dentes suas convicções, Tourinho é julgado, condenado, preso e expulso da Colônia sob acusação de blasfêmia. "A gente criou a peça como se fosse o calvário de Tourinho, mas sem cair na armadilha do campo moral ou do vilão individual. Importante são as forças sociais e políticas em conflito nesse momento." Dois outros personagens são representativos da formação da nação brasileira. A filha de Tourinho, criada para ser um fidalga de bons modos, é surrada pelo pai porque insiste em tomar banho de chuva e comportar-se como uma "indiazinha". Por outro lado, o bispo adota um "menino índio" educado nos moldes europeus, para se tornar um homem "civilizado". O personagem do indiozinho é responsável por uma das cenas engraçadas da peça, ao "representar" o menino Jesus num Auto de Natal. Dirigida por Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano, a Companhia do Latão vem tentando usar a linguagem teatral para compreender melhor a sociedade brasileira, suas contradições e estruturas de poder. Com esse objetivo, vem perseguindo uma dramaturgia própria, criada em parceria com os atores, nos processos de ensaios, a partir de temas que abordem, de forma dialética, aspectos da realiade brasileira. "Considero essa busca de dramaturgia própria uma característica importante da companhia. Nesse sentido, Auto dos Bons Tratos segue a mesma linha de O Nome do Sujeito e A Comédia do Trabalho." Serviço - Auto dos Bons Tratos. Texto Márcio Marciano e Sérgio de Carvalho, com a colaboração do atores do grupo. Duração: 90 minutos. Sextas e sábados, às 21 horas; domingos, às 19 horas. R$ 10,00. Teatro Cacilda Becker. Rua Tito, 295, São Paulo, tel. 3864-4513. Até 26/5