Peça retrata a família de O´Neill

Dramaturgo antecipou-se aos biógrafos e contou em Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro a história pungente de sua família nuclear. Por sua própria decisão, peça só estreou após a sua morte, em 1956

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Por Agencia Estado
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Antes que os biógrafos esmiuçassem os cantos obscuros da sua vida, Eugene O´Neill escreveu em 1941 a história pungente da sua família nuclear: Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro, por decisão do autor, só poderia ser encenada após a sua morte e estreou em Estocolmo, em 1956, três anos após a morte do autor. A transfiguração poética a que os grandes artistas submetem os fatos não obscurecia a matéria verídica da peça. Do mesmo modo que o Edmund Tyrone ficcional, O´Neill era filho de um próspero ator de companhias itinerantes mais interessado no lucro do que na qualidade artística do seu trabalho e de uma senhora que tratamentos médicos incompetentes havia levado ao vício da morfina. Também o personagem James, irmão de Edmund, moldava-se sobre circunstâncias verídicas e tinha na peça o mesmo nome do primogênito da família O´Neill. Inscrito no corpo do texto sobretudo nas falas da mãe, define-se o objetivo de revisitar o passado para distinguir nele a fatalidade da escolha. Ao cruzar a fronteira entre a atenção para o presente e a reminiscência estimulada pelo efeito opiático, Mary justifica o alheamento no passado: "Nenhum de nós pode remediar as coisas que a vida nos faz. Estão feitas antes mesmo que a gente se aperceba... e uma vez feitas, nos levam a praticar outras tantas coisas até que, no fim, tudo se interpõe entre nós e o que quiséramos ter sido e o nosso verdadeiro eu está para sempre perdido." Sobre essas retrações vertiginosas da identidade, problema ao mesmo tempo de ordem pessoal e filosófica que enfrenta desde as suas primeiras peças, O´Neill construiu uma vasta arquitetura dramática que, pela primeira vez na história do teatro norte-americano, tornou-se visível além das fronteiras do país. Durante os anos 20 e 30 do século passado, suas peças provocaram uma revisão do conceito do que a cena poderia ou não expressar em matéria de novidade e, ao mesmo tempo, instilaram no próprio teatro comercial norte-americano a noção de que o teatro poderia ser, mais do que entretenimento, uma atividade intelectual e um laboratório para novas formalizações de todas as linguagens artísticas. A partir da constatação da instabilidade dos conceitos e das formas, a dramaturgia desse autor extraordinário avançou sobre todos os temas que preocupavam não só os americanos como toda a intelectualidade ocidental que emergia tonta do trauma da 1ª Grande Guerra. Mais do que isso, amalgamou a esses temas elementos construtivos de várias tendências estéticas. Manifestava-se no campo do teatro e em outros fronts da cultura, a crise de um sistema binário oscilando entre as formas do século 19 - o drama realista e o bulevar - e a arte experimental das vanguardas históricas expressa pela multiplicidade dos "ismos". As peças de O´Neil, examinadas sob a ótica da análise formalista, incorporam tanto esse teatro do passado quanto invenções da vanguarda. São até hoje um desafio feito ao conhecimento histórico e ao senso de medida dos encenadores e intérpretes. Das 55 peças que escreveu entre 1913 e 1946 (algumas tão longas que a edição de suas obras completas estendeu-se por 12 volumes), há algumas que permanecem em cartaz no repertório mundial como clássicos do século 20 e que, de alguma forma, tipificam a diversidade de procedimentos e temas do dramaturgo. Uma delas é Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro, perene fonte de inspiração para o drama psicológico que se desenvolveu com inegável maestria na dramaturgia norte-americana a partir desse esplêndido exemplar do entrelaçamente de verismo e poesia. Mas há também Artes do Café, peça de um ato escrita em 1916, duelo entre o masculino e o feminino inspirado em Strindberg e contaminado pela obsessão da sociedade norte-americana pelo sucesso material. As dramatizações da psique profunda, camada em que a história se dissolve em um substrato primordial de impulsos, estão em peças como Imperador Jones (1920), O Macaco Peludo e Todos os Filhos de Deus Têm Asas (1923), que deram voz à obsessão contemporânea com o desvelamento dos conteúdos sob a linguagem ao mesmo tempo em que, por oposição, denunciavam o uso da linguagem como instrumento de dominação. A tragédia contemporânea, que considera a um só tempo o passado histórico e a atemporalidade da psicologia individual, renovou-se de forma modelar com Electra Enlutada (1930). A integridade do ser, cuja perda Mary Tyrone lamenta, fez da obra de O´Neil uma incessante e frenética investigação temática e formal. Não repetiu as formulações bem-sucedidas, recusou a cristalização. Considerado por muitos estudiosos um autor irregular, excessivo, tornou-se, segundo o historiador e crítico C.W.E. Bigsby, "um constrangimento". Por isso mesmo - afirma - "Não há caminhos que não passem por ele".

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