Peça recria trajetória do Almirante Negro

A vida de João Cândido do Nascimento, o líder da Revolta da Chibata, em 1910, é o tema de montagem do Grupo União e Olho Vivo que será apresentada no CCSP

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Por Agencia Estado
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Nos últimos anos, muito se ouviu falar de Arthur Bispo do Rosário, cuja arte inteiramente criada como interno na Colônia Penal Juliano Moreira - esculturas feitas de sucata e telas bordadas, muitas delas inspiradas nos tempos de marujo - tornou-se internacionalmente reconhecida. Mas raros são os que sabem que no mesmo ano em que Bispo do Rosário nascia, 1911, um personagem ilustre da nossa história criava quadros, igualmente usando materiais como retalhos e linhas, no mesmo local, o então Hospital de Alienados da Praia Vermelha, dirigido pelo médico Juliano Moreira. Esse personagem é João Cândido do Nascimento (1880-1969), o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata, em 1910, uma das páginas mais sangrentas, heróicas e esquecidas de nossa história. Dois desses trabalhos, Amor de Marinho e Adeus ao Marujo, integram o acervo do pequeno Museu Tomé Portes del Rey, em São João del Rey (MG), onde foram fotografadas pela reportagem. A segunda tela é uma homenagem de João Cândido a Francisco Dias Martins, o Mão Negra, o marujo que redigiu o manifesto ao então presidente da República, Hermes da Fonseca, expondo a situação dos marinheiros e pedindo a reforma das normas disciplinares na Marinha. "Assunto de alto-relevo e pouca presença na consciência dos brasileiros", como definiu o crítico Antonio Candido, o movimento liderado pelo Almirante Negro é tema do espetáculo João Cândido do Brasil, A Revolta da Chibata, do Grupo União e Olho Vivo, que será apresentado no Centro Cultural São Paulo, nos dias 11 e 12 de maio, às 20 horas. Antes disso, no dia 10, o CCSP promove em parceria com o Grupo União e Olho Vivo uma homenagem a João Cândido, que será representado por seu filho caçula, Adalberto do Nascimento Cândido, de 63 anos. A homenagem começa às 20 horas com palestras de César Vieira, diretor do grupo, e o pesquisador Clóvis Moura e contará com a presença do crítico Antonio Candido e a ensaísta Maria Thereza Vargas. Os atores do Grupo União e Olho Vivo consultaram jornais e revistas de época e, principalmente, as 44 publicações, entre elas o livro A Revolta da Chibata, de Edmar Morel (Graal Editora) para reconstituir, de forma dramática, misturando ficção e realidade, a história do marujo nascido em Rio Pardo (RS) que ingressou na Marinha aos 13 anos. "Na época, meninos negros eram recrutados à força e não podiam pedir baixa", conta Vieira. Apesar desse ingresso forçado, João Cândido apaixonou-se pela profissão. Em 1908, o governo brasileiro resolveu modernizar a Marinha e comprou da Inglaterra os mais modernos navios de guerra do mundo. João Cândido ficou dois anos em New Castle, acompanhando, nos estaleiros, as construções dos encouraçados e cruzadores que viriam ao Brasil. "O motim no Encouraçado Potenquim ocorreu em 1906 e ele, que falava inglês, certamente conversou sobre isso." Moderna tecnicamente, a Marinha brasileira usava métodos retrógrados e cruéis de recrutamento. A chibata havia sido abolida com a escravatura, mas continuava sendo utilizada para punir os marujos negros. No dia 22 de novembro de 1910, a Armada revolta-se, depois que um marujo recebe mais de 200 chibatadas no convés, punição tão cruel que até os oficiais viraram o rosto. O disciplinado timoneiro João Cândido, que jamais havia recebido uma chibatada, toma a liderança do movimento. Sob ordens do "Almirante Negro", os marujos manobraram os navios de guerra pela Baía de Guanabara e voltam os canhões para a cidade. Pedem o fim da chibata, aumento de soldo e o ingresso de negros na Escola de Oficiais. No Senado, Rui Barbosa defendeu - com êxito - a justeza das reivindicações e a anistia para os revoltosos. Mas a anistia foi cassada uma semana depois e os revoltosos cruelmente perseguidos e muitos mortos sob maus-tratos. João Cândido, depois de passar dias numa masmorra sem água ou comida - eram 18 marujos, só dois sobreviveram - foi internado como louco no Hospital da Praia Vermelha. Lá ganhou a proteção do médico Juliano Moreira. Dois anos depois, saiu. Mas jamais pode reingressar na Marinha, como gostaria. No dia em que o "seu navio" Minas Gerais virou sucata, ele pegou um barco e foi ao mar despedir-se do encouraçado. Na canção interpretada por João Bosco, João Cândido é o "navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais".

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