Peça infantil é pura aula de teatro

Quase de Verdade é inspirada nos textos que Clarice Lispector escreveu para crianças. São sete meninas em cena, presas no quarto na hora de dormir, querendo aprontar coisas de menina

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Por Agencia Estado
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Inspirado nas obras A Mulher Que Matou os Peixes, A Vida Íntima de Laura e Quase de Verdade, que Clarice Lispector escreveu para crianças (os livros foram recentemente reeditados pela coleção Jovens Leitores, da Rocco), o espetáculo Quase de Verdade, em cartaz no Auditório Lina Bo Bardi, no MAM, é uma verdadeira aula de teatro para crianças. Melhor dizendo: é uma lição para todos - não importa a idade - de como se faz um bom espetáculo adaptado de obra literária. Quem assina a adaptação é Ulisses Cohn, com a participação de todo o elenco, que atende pelo nome de Cia. Delas ­-- sete jovens talentosas atrizes. Cohn também assina direção, trilha sonora e cenografia. Transpor para o teatro os textos densos da genial escritora é uma tarefa hercúlea. Por isso, ganha maior valor ainda esse sucesso da empreitada de Cohn e suas meninas. O que é mais rico na adaptação - e o que faz dela uma aula - é a utilização bem feita de múltiplas linguagens cênicas, como se a intenção fosse juntar um punhado de recursos numa peça só, sintetizando, assim, para o público, a resposta para uma pergunta assustadoramente abrangente: como se faz arte no palco? Tentemos analisar, ponto a ponto, cada uma das lições desta pequena maravilha que é Quase de Verdade. Eis a primeira escolha acertada e de uma riqueza proporcional ao valor literário da grande Clarice Lispector: todas as sete meninas em cena ­-- ´presas´ no quarto na hora de dormir, mas sem apresentar nenhum sinal de cansaço ou sonolência -- são Clarices, sapecas Clarices, solitárias Clarices, efervescentes Clarices, querendo aprontar coisas de menina com uma sede transbordante de imaginação. O público, dependendo da idade e do seu grau de entrega ao espetáculo, pode entender ou não a sutileza de que todas elas são uma só. Não importa. O desafio está lançado e é isso o que faz uma obra ser artística ou não. Se é possível enriquecer a adaptação com um detalhe dessa amplitude, por que ser convencional e manter um só narrador, uma só atriz, uma só menina? Clarice, a verdadeira e única, aprovaria com louvor esse jogo narrativo multifacetado em que cada garota tem sua particularidade: a mandona, a que sempre perde, a que só reclama a mais criativa e assim por diante. Todas são Clarices jorrando vida com intensidade. A mãe, que o tempo todo fica mandando a menina apagar a luz e dormir, é caracterizada apenas por uma voz gravada, o chamado recurso do off. As atrizes às vezes rompem os limites do palco e literalmente pulam para a platéia ou, então, entram e saem por portas laterais do auditório. A cena dos cachorros é feita por dublagem, ou seja, uma atriz mexe a boca, enquanto outra, atrás dela, sem se esconder do público, é a que de fato fala. Uma ou duas vezes, e de forma bem controlada, as crianças da platéia são levadas a participar, respondendo a perguntas das atrizes. Tudo isso - o off, o palco ampliado na platéia, a dublagem, o jogo interativo com o público - são convenções teatrais, recursos, linguagens que Quase de Verdade vai desfilando com harmonia, lição por lição, sem medo de exagerar. É teatro apresentado como teatro, com tudo, ou quase tudo, a que tem direito. Aprende quem quiser. Caixa de Pandora - O cenário é formado por caixas, caixotes ou baús empilhados num canto do quarto da menina. Ao mesmo tempo em que pode ser chamado de realista, porque hoje os quartos das meninas são realmente modulares, com seus baús de mogno, de cerejeira ou laqueados, a cenografia de Quase de Verdade é também muito mais do que meramente naturalista. Outra lição de teatro. De dentro das caixas, as meninas vão tirando objetos, roupas, panos, papéis, enfim, adereços lúdicos surpreendentes e, com eles, vão compondo o espetáculo. Quem nunca viu uma peça de teatro, sobretudo infantil, feita assim? Um ator e um baú. Uma caixa de Pandora no porão da memória. Assim, com seus baús sem fundo, dos quais às vezes saem as próprias atrizes, Ulisses Cohn como cenógrafo, presta sua homenagem ao fazer teatral desde os seus primórdios e, ao mesmo tempo, ao fluxo de consciência da literatura confessional de Clarice Lispector. Mais recursos? A ´participação´ da lagartixa é feita com teatro de sombras - uma cena rápida e ilustrativa de outro tipo de linguagem. Mais lições? A cena da morte do cachorro é cruel, forte, quase naturalista - Clarice também não poupava seus leitores, não fazia concessões. Mais linguagens? O humor escrachado do galo Onofre é exemplo de comédia popular. A trilha sonora, que utiliza óperas como Carmen e O Barbeiro de Sevilha, com divertidas adaptações das letras, ensina que esse item - a música - também deve ser trabalhado com criatividade. O figurino traz uma lição clara. Ele é o responsável pelo alto-astral da largada do espetáculo, que começa com uma literal invasão da platéia pelas sete barulhentas atrizes vestidas de pijaminhas brancos. A cor é a simbologia de arranque da peça - anuncia o mundo cênico pleno de possibilidades que será descortinado a partir da pureza do branco. Também é muito comum que as peças infantis façam referências às brincadeiras dos quintais de antigamente, coisas que as crianças trancafiadas em apartamentos pouco conhecem hoje em dia. Ulisses Cohn também não as deixa de fora, como o pega-pega, o esconde-esconde, pular corda, mas as integra ao ritmo da narração, sem gratuidades saudosistas, sem atiçar o suspiro dos adultos. A brincadeira do telefone sem fio, por exemplo, aparece no espetáculo sem que se faça nenhuma referência explícita a ela. Uma das meninas decide que a melhor brincadeira mesmo é pegar seu caderno embaixo da cama e escrever um diário. Pronto. Eis aí a maior referência - e reverência - que um adaptador poderia fazer à arte de Clarice Lispector. Uma eterna menina diante de seus escritos. Uma artífice expulsando das páginas a exatidão da memória e cultivando nelas o exercício do esquecimento criativo, a introspecção, as sensações, os delírios os jogos e as brincadeiras. "Só me lembro do que esqueci", escreveu Clarice. No mundo, como na arte, tudo é quase de verdade. Serviço - Quase de Verdade. Domingo, às 11 horas. R$ 10,00. MAM/Parque do Ibirapuera. Avenida Pedro Álvares Cabral s/n.º, portão 3, tel. 5549-9688. Até 16/12

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