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Peça do coreógrafo Alain Platel revela gestos que não podem ser contidos

'Out of Context - For Pina', da C de La, mostra expressão de sentimentos pelos impulsos do corpo

Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

ENTREVISTA Alain Platel, coreógrafo belga Ele traz ao País a sua cia., a Les Ballets C de La B, para mostrar Out of Context - For Pina PORTO ALEGRE - Gestos que não podem ser contidos. Espasmos. Movimentos involuntários. Essas são as marcas que notabilizaram a trajetória do coreógrafo belga Alain Platel e sua cia., a Les Ballets C de La B. Em Out of Context - For Pina, espetáculo que o grupo trouxe ao Festival Internacional de Porto Alegre, a receita não é diferente: uma curiosa combinação entre inconsciente e virtuosismo. "Esses movimentos involuntários são um meio de expressar sentimentos muito profundos. É como se quando você não tem as palavras para expressar algo, o corpo se encarregasse disso", comenta Platel. Nome referencial da dança contemporânea, o artista belga conversou com o Estado durante sua estada na capital gaúcha. Não é a primeira vez que a C de La vem ao Brasil. Aliás, recentemente, sua presença tem sido constante por aqui. Sempre mostrando peças diferentes de seu repertório. Em julho, levaram a São Paulo a montagem Gardenia. A seguir, estiveram em Santos com Primero - Erscht, criação de outro coreógrafo do conjunto. Out of Context não deve passar por outras capitais do País. Mas talvez seja o mais impressionante trabalho que a cia. já mostrou para plateias brasileiras. Uma espécie de súmula do ideário desse coreógrafo que começou a carreira trabalhando com crianças deficientes e, ao longo dos últimos anos, espalhou esse lastro por suas criações. Mesmo com o subtítulo For Pina, Out of Context não traz em sua concepção referências à trajetória ou ao estilo da dançarina que morreu em 2009. Ainda assim, é possível enxergar nas entrelinhas os ecos que a criadora alemã deixou para os que vieram depois. Um das marcas do trabalho de Platel está justamente na carga de individualidade que consegue imprimir aos corpos de seus intérpretes. Bailarinos que, mesmo ao dançarem em conjunto, não perdem nunca o traço distintivo de suas personalidades, aquilo "que existe de único na maneira como cada um deles se move", conforme define o coreógrafo. Não é fácil descrever com precisão qual é exatamente o mote que impulsiona Out of Context. A série de contradições que despontam na obra, porém, talvez sirvam de boa pista para desvendá-la. A tensão constante entre controle e desmedida. Um pêndulo que oscila entre o belo e o grotesco, entre a alta e a baixa cultura. Referência que contamina, por exemplo, a trilha repleta de canções pop.

Existe sempre no seu trabalho um interesse muito evidente por movimentos involuntários, por gestos incontidos, inconscientes. Por que essa é uma questão tão premente na sua obra? Ao olhar minha experiência como psicólogo de crianças, vejo que havia algo que me fascinava. O jeito como eles eram, como se movimentavam. Eu gostava muito, mas também era embaraçoso de se ver. Quando me estabeleci como diretor no teatro, percebi que essa experiência estava presente em todos os meus trabalhos. Mas foi apenas nos últimos seis ou sete anos que comecei a trabalhar em cima desse tipo de movimento. Então, inicialmente, essa não era uma intenção? Pelo contrário. Eu tentava evitar essa influência. No começo, quando me perguntavam qual a relação entre fazer teatro e ter trabalhado com crianças deficientes, eu tentava dizer que esse vínculo não existia. Foi só muito recentemente que percebi que havia um interesse muito grande dos bailarinos que trabalham comigo de se dedicar ao estudo desse tipo de movimento. Só então me dei conta de que esses movimentos são um meio de expressar sentimentos muito profundos, coisas que você não consegue expressar com palavras. É como se, quando você não tem as palavras para expressar algo, o corpo se encarregasse disso.Mas, ao mesmo tempo em que lida com esses movimentos involuntários, você está trabalhando com bailarinos extremamente virtuosos. Talvez eu só possa trabalhar com esse tipo de movimento porque tenho dançarinos com essa técnica. A impressão é que esse tipo de pesquisa só é possível justamente porque eles têm esse controle. Seria muito mais difícil lidar com bailarinos menos virtuosos. Peço a eles que tentem analisar esses movimentos incontidos e se arrisquem a fazer coreografias com isso. E eles acham isso muito interessante: se perder em improvisações, perder o controle nessas situações, e, depois, tentar reconstruir tudo. Existe um aspecto que chama particularmente a atenção. No palco, esses dançarinos são um conjunto e atuam como tal, mas é também como se eles não perdessem nunca um traço de individualidade, como se cada um deles tivessem um jeito muito específico de se movimentar, com gestos e corpos que são carregados de pessoalidade. Sim, eu tento fazer exatamente isso. Nos meus primeiros espetáculos, procurava encontrar a maneira como cada um desses indivíduos se expressava por meio de seus corpos e procurava rastros de sua bagagem social e cultural. Mas acho que, nas últimas criações, tento identificar especificamente o que existe de único na maneira como cada um deles se move. Então, mesmo quando eles estão dançando em grupo, ainda acho importante distinguir diferenças. O indivíduo e a maneira como ele se expressa dentro de um grupo tem sido minha a minha obsessão. Mas como você faz isso? Como manter essa carga de individualidade? Isso tem a ver com a maneira como procuro as pessoas que trabalham comigo. Tento achar dançarinos muito diferentes uns dos outros, tanto fisicamente quanto em termos de background. Então, durante o processo, acho importante assegurar que essas diferenças apareçam. Em Out of Context você parece manter outro nível de contradição. Não apenas entre a movimentação incontida e o virtuosismo dos dançarinos, mas também uma oscilação entre alta e baixa cultura. Você lança mão, por exemplo, de várias canções de música pop. Por quê? Não vejo diferença entre as lágrimas de alguém enquanto ouve Mozart e aquelas dos que choram quando escuta Céline Dion. São as mesmas lágrimas. É claro que a música é diferente, mas posso me emocionar com uma música popular tanto quanto com aquela que pertence à esfera da alta cultura. Mozart não estava tão preocupado em fazer obras-primas. O que lhe interessava era fazer boa música para que as pessoas gostassem. Naquele tempo, aquilo era música popular. Você começou a fazer Out of Context antes da morte de Pina Bausch. Em que sentido ela aparece no espetáculo? Eu conheci Pina há 30 anos. Sua dança me impressionava muito e havia também uma ligação pessoal entre nós. Então, quis dedicar esse espetáculo a ela. Mas nunca pensei em trazer referências a ela ou da sua dança para dentro da montagem. Recentemente, quando estivemos em Sydney, na Austrália, alguns dos dançarinos que trabalharam com Pina participaram do espetáculo, fazendo uma intervenção. Foi muito interessante, mas não era uma intenção. Em Porto Alegre, também assistimos a um momento de intervenção da plateia, quando várias pessoas subiram ao palco e se juntaram aos dançarinos. Como essas intervenções funcionam? Tento surpreender os bailarinos durante o espetáculo, fazendo coisas inesperadas ou divertidas. Já tivemos várias belas surpresas, como ter bebês no palco, cachorros ou cantores. Há também pessoas da plateia que viram a apresentação e pediram para voltar no dia seguinte e participar. Você disse que não tentou colocar referências a Pina Bausch ou ao trabalho dela no espetáculo. Mas como, você acredita, ela influenciou seu trabalho como criador? Assim como todo mundo, a primeira vez que vi Pina nos anos 80 fiquei bastante impressionado. Naquele momento, nós tínhamos uma dança moderna, mas nada que se parecesse com aquilo, com o trabalho de Pina a partir das vidas pessoais dos bailarinos. Eles faziam coisas divertidas. Às vezes não dançavam, conversavam, ficavam parados. Ela devolveu aos dançarinos a sua identidade. É como se ela nos fizesse entender que eles também pensam, falam. Em Gardenia, você não trabalhava com dançarinos profissionais. Como foi o seu processo de criação? Na primeira semana, estava realmente preocupado, porque eles não tinham experiência. Sabia que eles tinham um passado em comum, como transexuais e travestis. Mas ver homens vestidos como mulheres pode ser interessante nos primeiros cinco minutos... depois disso perde a graça. Eu, então, tentei encontrar mais do que esse fato. A princípio foi complicado, mas percebi que a maneira como trabalho com bailarinos profissionais - a partir de improvisações ou dando a eles várias fontes de informação - esse tipo de coisa não foi tão diferente. Nascido na cidade de Gand, na Bélgica, em 1959, Platel começou a criar suas coreografias em 1980. Quatro anos depois, funda a Gand Les Ballets C de la B, referência na dança contemporânea especialmente por tratar de problemas psicológicos em suas coreografias.

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