PUBLICIDADE

Peça de Bernhard chega a SP ainda mais afiada

O espetáculo Almoço na Casa do Sr. Ludwig, vindo do Rio Grande do Sul para curta temporada na capital paulista, amadureceu e está ainda mais incisivo

Por Agencia Estado
Atualização:

Um dos maiores prazeres que o palco proporciona é o testemunho do crescimento, do amadurecimento de um espetáculo. Almoço na Casa do Sr. Ludwig, produção vinda do Rio Grande do Sul, em cartaz no Espaço Promon (antiga Sala São Luís), oferece essa oportunidade aos espectadores que tiveram ocasião de ver sua estréia, no Festival de Teatro de Curitiba, em março, e podem agora rever o trabalho, que passa por São Paulo em rápida temporada. Em Curitiba, a produção dessa peça de Thomas Bernhard (1931-1989), o cáustico misantropo austríaco, já mostrava um formidável pulso. Mas capengava na primeira das três cenas, apresentada de forma tímida e indecisa. Suas intérpretes, as atrizes Ida Celina e Sandra Dani, somente ganhavam vida e energia depois da entrada do ator Luiz Paulo Vasconcellos. Luciano Alabarse, diretor de Almoço na Casa do Sr. Ludwig, corrigiu esse descompasso. Impôs às atrizes um ritmo mais enérgico, incisivo, e fez cortes estratégicos no texto de Bernhard. Sem desrespeitar ou alterar uma só das idéias do autor, tornou-o mais dinâmico e, se possível, explosivo. Thomas Bernhard escreveu vários romances impactantes, a maioria formada de um único e imenso parágrafo. Parte deles foi traduzida para o português, caso de Náufrago, Extinção (Cia das Letras) e Árvores Abatidas (Rocco). Bernhard foi autor também de marcantes incursões pela dramaturgia. Entre elas estão as devastadoras No Alvo, montada em 1997 por Maria Alice Vergueiro, e Antes da Aposentadoria, inédita no Brasil. Outra obra escrita diretamente para o palco é Almoço na Casa do Sr. Ludwig, cruel peça inspirada na vida do filósofo Ludwig Wittgenstein, autor do Tractatus Lógico-Philosophicus, um dos pilares da lógica no século 20. A estrutura de Almoço é simples, quase linear. Quando tem início a ação, as irmãs de Ludwig, Denne (Ida Celina) e Ritter (Sandra Dani), dialogam sobre o irmão, que acaba de retornar de um longo período de internação em uma clínica para doentes mentais. As duas cenas seguintes mostram o que acontece durante e depois do almoço, quando o explosivo Ludwig detona a família, a medicina, a arte e entra em confronto direto com a maternal e conciliadora Denne e com a cética e irônica Ritter. O texto de Bernhard é uma metralhadora que não poupa nada e ninguém. O escritor odiava os seres humanos e ao mesmo tempo admitia que esses eram "o único fim de minha existência". Seus romances, assim como suas peças, mostram até que ponto extremo o artista conduziu esses conflitos insolúveis. Tanto a prosa quanto a dramaturgia de Bernhard, talvez o mais exacerbado entre os escritores misantropos do século 20, só não chegam a ser experiências deprimentes porque há nesses textos uma alta dose de humor negro, além de muitos sinais que apontam para boa dose de afeto e de compaixão por todos os condenados à condição humana. Esses traços foram muito bem apreendidos por Alabarse em sua montagem, que ancora no mais rigoroso realismo para dar conta do mundo de idéias alucinantes, desencontradas, alarmantes, desencadeado pelo dramaturgo. A excelente cenografia de Sylvia Moreira, os figurinos adequados e eficientes de Ruy Spohr, a iluminação de Giancarlo Carlomagno são elementos que contribuem para dar peso e solidez à moldura realista requerida pela encenação. O espetáculo foi conduzido por Alabarse para um clima corriqueiro, de dia-a-dia, o que faz ressaltar com maior ênfase a loucura de Ludwig e a cumplicidade das irmãs, que aceitam as manias, os rompantes, os acessos de fúria do personagem. A ação avança até os limites do improvável, nas cenas em que Ludwig questiona a presença dos retratos dos antepassados nas paredes, investindo mais tarde contra eles em um acesso hilariante e assustador de fúria impotente. Com as arestas devidamente aparadas pela mão segura de Alabarse e com Sandra Dani e Ida Celina atuando em uma linha decidida, contundente, Almoço na Casa do Sr. Ludwig chega a São Paulo como um espetáculo equilibrado, bem elaborado, que precisa ser visto tanto pelos fãs de Bernhard quanto por quem não conhece o poderoso escritor. A montagem preserva os tons de desencanto que predominam no trabalho do dramaturgo, mas ao mesmo tempo aponta para as contradições dos personagens. Ludwig vitupera, agride a sociedade, a família, a arte, a corrupção, mas é o primeiro a corromper os médicos do sanatório para que o deixem em paz. E para as irmãs, que são atrizes, ele faz, dentro de uma peça de teatro, várias declarações de desprezo a essa arte. Ludwig, além de tudo, depende inteiramente da família, já que, machista e mimado, é incapaz de servir-se de um simples copo d´água posto a sua frente. Precisa que a irmã o faça. O elenco agora mostra uma coesão e adesão ao drama de Bernhard que afia o gume do texto. Ida Celina e Sandra Dani exploram muito bem os aspectos contrastantes das irmãs. E Luiz Paulo Vasconcellos, ator superlativo, repete a performance vista em Curitiba com mais agudeza. É um intérprete em plena posse de todos os recursos expressivos, que consegue embarcar no destempero, no descontrole, sem jamais recorrer à caricatura. Almoço na Casa do Sr. Ludwig não é uma experiência reconfortante. Mas é teatro maiúsculo, obrigatório, para quem não se atemoriza com as agressões de que a arte, quando grande, é capaz. Almoço na Casa do Sr. Ludwig. Drama. De Thomas Bernhard. Direção Luciano Alabarse. Duração: 110 minutos. Sexta e sábado, às 21 horas; dom., às 19 horas. R$ 20,00 e R$ 25,00 (sábado). Espaço Promon. Avenida Juscelino Kubitscheck, 1.830, tel. 3847-4111. Até 8/9.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.