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Pé na estrada

Não havia janeiro em que minha caudalosa família não encarasse a estrada

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Por Redação
Atualização:

Janeiro era tempo de botar o pé na estrada – e quando digo estrada, para começar, estou falando de terra ou barro, quase sempre, pois asfalto era então coisa bem rara, e não apenas em Minas Gerais. Asfalto, ali, praticamente só na BR-3, hoje BR-040, rodovia à época estreita e sinuosa que, certa inesquecível vez, dezembro de 1957, nos levou ao Rio de Janeiro, meu pai, o Rodrigo, o Otávio e eu, num ônibus da Viação Expresso Brasileiro, para ver o Botafogo, time do coração do velho (38 anos!) espancar o favorito Fluminense por 6 a 2, na finalíssima do campeonato carioca, com direito a toda sorte de diabruras do Mané Garrincha.

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Com direito, também, permita-me o parêntese, a uma parada para fazer xixi em Juiz de Fora – o que para muitos belo-horizontinos (não era em absoluto o nosso caso) significava regar uma rivalidade boba que existia entre os nativos das duas cidades: os narizes empinados da capital versus uns pretensiosos que, caricaturava-se, estando a quase 200 quilômetros de Copacabana, ainda assim se davam ao abuso de puxar no xis e afetar carioquismos. Em Beagá havia quem jurasse ter lido em néon, na fachada de uma farmácia juiz-forana, sob o nome do estabelecimento: “Preços do Rio”. Em nível menos grosseiro, havia também quem requentasse uns versos com que o jovem Carlos Drummond de Andrade buliu com um de seus melhores amigos, nascido na então apelidada Manchester Mineira: “O poeta Pedro Nava/ regressou de Juiz de Fora./ Parabéns a Juiz de Fora./ Parabéns a Pedro Nava”. 

Aquela foi, que me lembre, uma rara expedição do nosso clã a bordo de um busão, pois nos anos 1950 o que se usava lá em casa era um Chevrolet 1939, que foi primeiro azul-claro, depois preto, substituído, em meados da década, por uma Kombi – único veículo capaz de abrigar a copiosa prole do dr. Hugo e da d. Wanda, brava senhora, eventualmente senhora brava, que entre janeiro de 1943 e janeiro de 1962 passou 99 meses grávida, isto mesmo, 8 anos e 3 meses, tempo que levou para gestar 11 crias, a primeira delas aos 22 e a derradeira quando mal chegara aos 40.

Vamos, antes de mais nada, ao referido Chevrolet 1939, para mim o primeiro carro que tivemos, pois na memória não estacionou um Ford Bigode, creio que 1929, no qual sacolejei, bebê. Simpático, aquele Chevrolet, cujo capô se abria em dois, qual asas de urubu prestes a decolar. Bancos inteiriços, o da frente, inclusive, ambos de couro, luxo de hoje então generalizado. Lataria duríssima e para-brisa de vidro plano – duas placas unidas no centro, uma das quais, a do carona, num acidente de estrada, foi atravessada pelo rosto de um amigo de meu pai, passarinheiro que nem ele, o Elpídio, que durante anos, ao se barbear, haveria de ver a navalha desenterrar caquinhos transparentes. Foi naquele dia que pela primeira vez vi chorar meu espartano pai, num tempo em que homem não chorava, entrando em casa aos prantos, num desamparo impossível de esquecer, a abraçar sua mulher e a repetir “Wanda, eu matei o Elpídio!”. Não matou, e nem seria culpa sua, provado ficou, mesmo se o amigo nunca mais tivesse passarinho por pegar ou barba por fazer.

A prole quase toda tinha vindo ao mundo quando o nosso Chevrolet deu lugar à primeira de inúmeras Kombis que meus pais tiveram, sucessivos “pães de fôrma” (assim se dizia, debochadamente) que a mamãe pilotaria por duas, três décadas, no leva e traz criança entre escola e casa. “Estou completando bodas de prata de levar e buscar filho”, disse ela um dia, divertida, num pique de quem se dispusesse a chegar às de ouro também nesse departamento.

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A Kombi veio resolver, ou quase, o problema de cada filho ou filha fazer questão de ter uma janela ao lado. O que não significa que a paz tenha passado a reinar entre a molecada, pois motivos para briga nunca faltariam a bordo de um veículo a bambolear por estradinhas para lá de precárias nas entranhas de Minas Gerais. Calorão, janelas fechadas às pressas para que não embarcasse a poeira levantada pelos outros carros, estradas por vezes trepidantes por causa das “costelas”, lamaçais que por pouco não demandavam, como no Chevrolet, vestir as rodas com pesadas correntes para que se pudesse atravessar o barro – de certa forma, me ocorre agora, como as galochas de borracha preta com que era preciso revestir os sapatos Vulcabrás quando chovia na cidade. Esquisitice, aliás, aquela espécie de camisinha podal, que em algum momento deu origem ao designativo “chato de galocha”. No tempo se foram as galochas – mas os chatos seguem firmes, sob chuva ou sol.

Não havia janeiro em que minha família não tomasse a estrada, ainda que fosse para a fazenda, não longe de Belo Horizonte, para onde seguiam também, para distribuir-se por três casas, alguns dos irmãos e irmãs de meu pai, os Furquim Werneck – tribo para a qual um daqueles tios cunhou o rótulo galhofeiro de “furquinipim-werneckoré”. Num desses pousos, o Roseiral, ficava às vezes minha avó, a dona Dora, de quem me lembro, de maneira especial, aboletada numa pequena mesa de jogo com tampo de tecido verde, entretida em jogos de buraco dos quais participavam mais frequentemente o genro Carlos e a nora Wanda. Vovó tinha dificuldade, para dizer o mínimo, em aceitar vitória alheia – e não por outro motivo a mamãe, mineira até dizer chega, desfazia canastras para não vencer a sogra. Cortava voltas, a dona Wanda, e não só no jogo de baralho, para não colidir com a irascível dona Dora – da mesma forma como jamais passava adiante o azedume e a maledicência que uns furquinipim-werneckoré vinham destilar em seus ouvidos. “Se eu abrisse essa boquinha”, disse ela um dia, “ia ser um tendepá...” – uma daquelas bizarrias verbais incrustadas em seu vocabulário, sinônimo, informa aqui o Houaiss, de briga, rixa, vozeria, confusão. 

Mas... epa... Vim aqui falar de viagens, e, em outro sentido, viajei. Se você se dá à pachorra de me ler, já sabe que, como dizia de si mesmo o caudaloso poeta Neruda, em prosa mais dispersivo ainda, “tiene muchas ramas el árbol de mi conversación”. De qualquer maneira, as férias estão longe de acabar, e aqui vamos fazer não mais que uma parada, você e eu, para retomar a estrada na semana que vem, se vier.

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