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Patronos da Independência se uniram contra Portugal mesmo tendo amizade difícil

D. Pedro I e José Bonifácio marcaram seu nome na história do Brasil em 1822

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Por João Luiz Sampaio
Atualização:

O momento não comporta mais delongas ou condescendências. Com essas palavras, José Bonifácio de Andrada e Silva escrevia no dia 1.º de setembro de 1822 a d. Pedro. “Fique”, segue o texto, exortando o príncipe regente a não retornar a Portugal. “E, se não ficar, correrão rios de sangue nesta grande e nobre terra.” A carta chegou às mãos de d. Pedro em 7 de setembro, mesmo dia em que mais tarde, às margens do Ipiranga, ele declararia a independência. Ele se tornaria, então, d. Pedro I, imperador do Brasil. E o herói mais vistoso do movimento que teve Bonifácio como principal teórico e artífice.

Quadro do pintor Pedro Américo que retrata a Declaração da Independência Foto: Monalisa Lins/Estadão|Reprodução Museu do Ipiranga

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“A deles era uma relação de confiança e de convergência de ideias”, diz a historiadora Miriam Dolhnikoff, biógrafa de Bonifácio. Mas não uma relação fácil. “Eles tinham personalidades muito fortes, a diferença de idade era grande. Bonifácio podia ser autoritário e d. Pedro, instável, temperamental”, lembra a historiadora Isabel Lustosa, autora de biografia do imperador.

Ciência e ritos

Bonifácio e d. Pedro tiveram formações bastante diferentes. Bonifácio nasceu em Santos em junho de 1763, mas logo seguiu para a Europa. Em Portugal, graduou-se em Filosofia Natural e Direito Civil na Universidade de Coimbra, na qual deu aulas de geognosia (estudo da composição das rochas) e metalurgia. A serviço do governo português, viajou pela Europa pesquisando sobre mineralogia e foi nomeado em 1802, pelo príncipe regente d. João, intendente-geral das Minas e Metais. “Bonifácio se formou no início do liberalismo e via o cientista como alguém que deve colocar o seu conhecimento a favor de um projeto de modernização, alguém capaz de influenciar políticas de Estado”, conta Dolhnikoff. “Ele ocupou cargos públicos com objetivos pragmáticos, como pesquisar sobre a produção de ferro ou a exploração de minas.” Bonifácio lutou como comandante contra os invasores franceses, em 1807. E, em 1819, após se aposentar na universidade, começou a pensar em um retorno ao Brasil, para “viver e morrer como simples roceiro” em seu sítio em Santos. A essa altura, d. Pedro havia acabado de celebrar seu casamento com Leopoldina, garantindo assim a aliança entre Portugal e Áustria e mantendo o reino próximo dos países que haviam derrotado Napoleão – de quem a corte portuguesa fugira em 1808, mudando-se para o Brasil. Com d. João e Carlota Joaquina, seus pais, d. Pedro chegou à colônia com 9 anos. Biógrafos dão conta de uma infância e adolescência difíceis, com pouco interesse pelos estudos, convulsões causadas pela epilepsia e uma relação hesitante com o pai. “D. Pedro cresceu no Rio de Janeiro, não era um homem inculto, mas gostava de andar pelas ruas, tinha certo desprezo pelos ritos oficiais da monarquia”, lembra Lustosa.

Último retrato de Dom Pedro I, por volta de 1830, feito por Simplício Rodrigues de Sá Foto: Museu Imperial de Petrópolis

A proximidade com as questões de Estado surgiu no início dos anos 1820. Em abril de 1821, a Revolução Liberal do Porto fez com que d. João VI retornasse a Portugal, deixando d. Pedro no Brasil como príncipe regente. “É só então que ele vai aprender na marra, no dia a dia mesmo, o que significava uma atuação política”, acredita o historiador Paulo Rezzutti, autor do recém-lançado Independência – A Construção do Brasil: 1500-1825. E é nesse momento que as trajetórias do príncipe e de José Bonifácio vão se cruzar de modo indissociável – ao menos de início.

Fico I e Fico II

A Revolução do Porto teve consequências diretas no Brasil. Se o discurso por lá era liberal, na prática, no que se referia ao País, o movimento só reforçava o espírito colonialista, com a crença de que a reestruturação econômica de Portugal se daria com a subjugação completa da colônia. Entre 1820 e 1821, tentou-se proibir que ela negociasse com qualquer outro país além de Portugal (o que significava um baque para agricultores que mantinham relações comerciais com a Inglaterra). A metrópole chamou de volta as repartições instaladas no Brasil. E novas tropas foram enviadas ao País. Bonifácio a essa altura já havia desistido da breve vida pacata em Santos, envolvendo-se com a política nacional. Em 1821, tornou-se vice-presidente da Junta Governativa de São Paulo. E esteve ao lado do príncipe regente quando nova ordem chegou de Portugal: d. Pedro deveria voltar à Europa. Enquanto grupos defendiam o retorno do príncipe e o respeito às decisões tomadas pela corte – ou, então, a implementação de um improvável modelo republicano –, Bonifácio pregava a instalação de um regime monárquico constitucional. Ao lado da princesa Leopoldina, ele foi fundamental no processo de convencimento que levaria à decisão do regente de ficar no País, tomada no dia 9 de janeiro de 1822, data que ficou conhecida como o Dia do Fico. E d. Pedro fez dele o primeiro brasileiro a ocupar um posto de ministro de Estado, na importante pasta dos Negócios do Reino, Justiça e Negócios Estrangeiros. Os dois não concordaram com o passo seguinte: a convocação de eleições e de uma assembleia constituinte ainda em 1822. Mas ela aconteceu e teve um significado concreto: o afastamento cada vez mais iminente entre metrópole e colônia. Qualquer possibilidade, anteriormente aventada pelo próprio Bonifácio, de negociação com Portugal, esvaziou-se. Em agosto, d. Pedro determinou que qualquer nova tropa enviada por Portugal seria considerada inimiga. E partiu para viagem a São Paulo. Enquanto isso, a corte enviou documentos ao Brasil determinando mais uma vez o seu retorno imediato e revogando os decretos do príncipe. Leopoldina, que ficara no Rio como regente durante a viagem, e Bonifácio enviaram a ele cartas contando do acontecido, recebidas pouco antes da declaração da independência – os originais se perderam, mas há transcrições sobre as quais trabalham os historiadores. “Pedro, o Brasil está como um vulcão. As Cortes Portuguesas ordenam vossa partida imediata, ameaçam-vos, humilham-vos. (...) Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças se partirmos agora para Lisboa”, escreveu Leopoldina. “O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio, ele fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece. Pedro, o momento é o mais importante de vossa vida”, completa. A carta de Bonifácio, por sua vez, insistia na urgência do momento: a revolução estava preparada.

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Quadro de José Bonifácio Andrada e Silva, pintado por Benedito Calixto Foto: Museu Paulista

Projetos

“José Bonifácio tinha uma ideia de nação bem definida. Em seu período em Portugal, ele sentiu que não conseguiu realizar tudo o que imaginava e culpou a burocracia e a ignorância. Agora, era como se a independência fosse uma nova oportunidade, de caráter ainda mais político, de colocar em prática um projeto. E de estar à frente dele”, diz Dolhnikoff. Entre as propostas de Bonifácio estavam o fim da escravidão, a mudança na forma de apropriação da terra e a organização do Estado, sem a qual, acreditava, não poderia existir uma nação de fato moderna.  “Era um projeto reformista, que levava adiante as ideias do modelo norte-americano, já colocando em pauta a questão do negro e do indígena, por exemplo”, explica Rezzutti. “Se Bonifácio é o artífice da independência e de uma nova ideia de país, d. Pedro I será capaz de congregar como líder esse movimento.” Para Isabel Lustosa, não se pode menosprezar o papel de d. Pedro I nesse processo. “Bonifácio imaginou e ele levou o projeto adiante. D. Pedro já entendia que o Estado precisava ser organizado em torno de uma Constituição capaz de manter a integridade nacional. Era um príncipe do antigo regime, mas que fez um movimento em direção ao constitucionalismo.” A questão da integridade seria central após a independência – e uma que preocupou Bonifácio em especial. Em 1822, 1823 e 1824, foram debeladas revoluções no Pará, em Pernambuco, na Bahia e outras províncias, que resolveram se posicionar a favor de Portugal. “D. Pedro I vai demonstrar nesses episódios enorme força e determinação, mas precisamos lembrar também que esse projeto de unificação territorial era autoritário e se deu por meio da violência”, explica Lustosa. Bonifácio não participou de todo o processo: ele e d. Pedro I se desentenderam em 1823, quando se formou a Assembleia Constituinte responsável por criar uma Constituição. “A relação entre os dois passou a enfrentar problemas quando diferentes forças começaram a se impor no jogo político. Tanto Bonifácio quanto d. Pedro I acreditavam que o poder executivo precisava ser forte, enquanto outros grupos que participaram da constituinte preferiam dar ao parlamento o maior peso. Esses grupos eventualmente conseguiram afastar o imperador da presença constante de seu ministro. E não por acaso. Afastar Bonifácio era uma maneira de afastar também a ameaça das reformas radicais que ele pregava”, observa Dolhnikoff. Ainda em 1823, d. Pedro fechou a constituinte e começou a preparar, com o apoio dos militares e de alguns deputados, uma Constituição que seria promulgada em 1824. Bonifácio foi preso e mandado para o exílio na Europa. De lá, retornaria apenas em 1829. Retirou-se para a Ilha de Paquetá, até que, entre 1831 e 1832, serviu como deputado pela Bahia. Também em 1831, a relação dos dois viveu um novo episódio curioso, como diz Dolhnikoff: foi quando d. Pedro I chamou Bonifácio para ser tutor de seus filhos. “Bonifácio foi muito duro em suas críticas ao imperador, a quem xingou e desprezou em textos na imprensa. E, em troca, foi exilado. Ou seja, havia entre os dois enorme antagonismo. Então, como saber o que motivou esse convite? A hipótese que levanto é a de que Bonifácio também era inimigo da ala que, em 1831, forçaria a abdicação. E d. Pedro I não queria que a educação de seus filhos ficasse nas mãos desse grupo.” Isabel Lustosa vê a questão por outro ângulo. “D. Pedro foi figura profundamente contraditória. Era um homem violento, mesquinho, pouco gentil no trato, traía a esposa. Mas também entendia que um rei não valeria mais só por si mesmo, preocupação que influenciou na educação dos filhos”, reflete. E Rezzutti completa: “Nas cartas dele para os filhos, mesmo os que teve fora do casamento, o imperador insistia muito na questão da educação. Havia acabado a época em que o lugar que se ocupa é determinado só por privilégios. E ele talvez soubesse que Bonifácio era o homem mais bem preparado para orientar seus filhos”.

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