Na cidade onde nasci e me criei, Belo Horizonte, a ninguém ocorreria pôr em dúvida o gênero a que pertencia a palavra patinete. A engenhoca não-motorizada sobre a qual a minha geração atravessou toda uma década, a de 1950, era a patinete, substantivo feminino, e estávamos conversados. Sem qualquer contestação ou solavanco lexicográfico, a mesma certeza deslizava também no Rio de Janeiro, conforme atestam contemporâneos meus que lá cresceram – como, de resto, em todo o território nacional, cujos extremos norte e sul, aliás, eram então o Oiapoque e o Chuí, e não, como se soube depois, o Chuí e o monte Caburaí, em Roraima. Nossa certeza se apoiava não apenas numa prancha de madeira resistente, mas na unanimidade dos dicionários em circulação – o que, de resto, segue acontecendo.
Mas acontece também que, por algum motivo, uma quantidade crescente de brasileiros, talvez já majoritária, vem de decidir que a graciosa patinete é agora o impetuoso patinete, macho ao ponto de exigir capacete e limite de velocidade. Em outras palavras: patinete, meus amigos, não é mais aquela. Mesmo gente bem rodada tem se convertido a um modismo que, tudo indica, veio para ficar. “Quando eu comprar o meu, vou usar o patinete, porque não sou um arrogante e antiquado doutrinador”, comunica na internet um consultor para assuntos de língua portuguesa.
Para quem leve a sério a ministra Damares, aquela do Jesus na goiabeira, tornou-se imperioso revestir de azul o que até há pouco era indubitavelmente rosa. Mais difícil, para a ministra e seu rebanho, e mesmo francamente embaraçoso, será admitir que o patinete vem a ser um cabuloso caso de transgênero vocabular. * Já confessei, inclusive por escrito, a mania que arrasto, desde a infância, de ler dicionário. No começo, admito, era guiado por impulsos pecaminosos. Minhas investidas no Caldas Aulete e no Laudelino Freire, cada um deles com seus cinco tomos, eram quase sempre uma excitada garimpagem de palavras ditas “feias”, aquelas que não convinha proferir, numa treva mineiro-católica em que até mesmo “seio da família” poderia acender em nós, meninos, uma hipótese de lubricidade.
A fase passou, mas não o vício solitário de catar palavras. Não tardei a me dar conta de que o dicionário não precisa ser apenas uma caixa de primeiros socorros, lúbricos ou não, mas também manancial para quem queira explorar as virtualidades da língua, guiado pela suspeita de que a cada coisa corresponde uma palavra.
Também nisso, porém, me parecia haver um tanto de pecaminoso; no mínimo, perda de tempo de quem deveria catar ocupação mais útil em vez de colecionar esquisitices do tipo hápax, alpondras, amaxofobia.
Foi uma alegria, bem mais tarde, descobrir que Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, escritores de nomeada e cavalheiros acima de qualquer suspeita, também eram dados à leitura de dicionários. “Estou lendo e marcando as palavras úteis para o meu caso, os sentidos figurados aproveitáveis nesta ‘nossa’ literatura, etc.”, escreveu Lobato ao romancista de Vida Ociosa. “Ainda estou no ‘A’ e já tenho belos achados. É um verdadeiro mariscar de peneira.”
Empolgado, a certa altura o criador do Sítio do Picapau Amarelo chegou a pôr de lado a feitura de contos para embrenhar-se no Aulete. Já então na letra M, explicou ao amigo: “Dá-me mais prazer isto, além das vantagens que traz – prazer pitoresco, variado como o de um general que assistisse ao desfile de 70 mil homens não uniformizados, cada um vestido dum jeito e lá com sua cara diferente”.
Nem por isso o criador do Sítio do Picapau Amarelo saía por aí, semostrador, a disparar as excentricidades verbais que desenterrava, como costuma fazer a Solange, minha prima que adora falar difícil, à qual, não por outro motivo, já dediquei meia dúzia de crônicas.
“Depois do enriquecimento vocabular é preciso que aprendamos a bem gastar o acumulado”, ensinou Lobato, “senão viramos nouveaux riches e insensivelmente nos metemos a ostentar riqueza vocabular.”
Pena que não esteja mais aqui o Lobato, para nos dizer se patinete fica melhor de azul ou cor-de-rosa. * Já que você me acompanhou até aqui, me permita mudar o tom e desatar declaração de amor pelo objeto da conversa torta que desenrolei:
Tomar a palavra como coisa viva, pulsante, não como vogais e consoantes na tela ou na folha de papel; tomá-la como vocais, soantes, não como pobre envoltório de informações cerebrais. Nos olhos, na boca, nos ouvidos, na pele dos dedos e do corpo, para sentir antes de compreender. Considerá-la como fim, bem mais que meio, como destino bem mais que veículo. E, gostosa brincadeira, repeti-la, repeti-la, repeti-la à exaustão, até que à força da repetição o significado se esvaia, se desprenda, como a ostra de sua concha, e em seguida pescar, no aquário das sonoridades, uma nova ostra para aquela concha. Mais justa, exata e palatável que a primeira, a deslizar na língua, em todos os sentidos. Quem sabe, trocar os habitantes de diversas conchas para que eles, em casa nova, se carreguem de energia como bateria a que se dá um novo sopro: onde isto ficará melhor? Despir conteúdos cansados de seus invólucros, buscar para eles a vestimenta mais precisa na gôndola dos magazines verbais, no mar das palavras em situação dicionária (obrigado, João Cabral), e provar, prover, provocar, esgotar as mil possibilidades desse espelho em que se ajusta o foco da perfeição.
Em nome do prazer, ignorar categorias – gramaticais, ortográficas, sintáticas, sexuais. Como quem descobre o som de uma temperatura, o tempero da temperatura na boca sorvendo o líquido não suficientemente frio: a cerveja meio quente, dizia o poeta Hélio Pellegrino, não está morna, está môrna. Pense, em suma, no que fizeram imigrantes japoneses com aquele bairro paulistano, e faça o mesmo com as palavras: tome a liberdade.