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Luzes da cidade

Parabéns pra mim

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Ando zonza com tanta congratulação. Não consigo dar conta da exaltação do eu em tudo o que se passa à minha volta, da tragédia das mulheres em Cleveland à estreia do pequeno filme que Baz Luhrmann insiste em vender como a versão do romance O Grande Gatsby.A amiga de um falecido colega de banda de salsa de Ariel Castro foi à TV se congratular por ter se mudado para Nova York e colocado sua própria filha fora do alcance do predador de Cleveland. O próprio estuprador tentou polir sua imagem, culpando as mulheres por terem aceitado a carona que levou ao cativeiro, transferindo para as vítimas parte de sua monstruosidade. O policial aposentado que não prendeu Castro em 2004, quando o surpreendeu dirigindo uma motocicleta sem carteira, disse que, graças a ele, o sequestrador pôde voltar para casa e continuar alimentando suas vítimas. A polícia de Cleveland continua a se congratular por tudo o que não fez durante dez anos, apesar dos testemunhos de moradores que relataram aparições assustadoras, de uma mulher nua acorrentada no quintal e uma mulher batendo na janela com uma criança no colo na casa de horrores da Rua Seymour.A mais velha das mulheres sequestradas, Michelle Knight, disse que sofreu cinco abortos provocados por Castro que a fazia passar fome por duas semanas e completava o procedimento a socos. Ela vai precisar de cirurgia reconstrutora da face, tal a extensão dos maus-tratos que sofreu. Pois o hospital onde Michelle Knight foi internada, publicou em sua página no Facebook - pausa para indignação com a promiscuidade da medicina com a mídia social - que a paciente estava com ótima disposição. Parabéns para o hospital?Um âncora da CNN ouviu satisfeito enquanto a irmã de outra vítima, Gina De Jesus, lhe fez uma longa homenagem por não ter sobrevoado de helicóptero a casa da família, tornando a mulher cativa, pela segunda vez, agora da atenção da mídia. Não violar a privacidade de uma vítima de crime é motivo para felicitação. O que me leva ao festival de confete que concluiu a triste semana, em torno da estreia da sexta versão em filme de O Grande Gatsby. O diretor australiano Baz Luhrmann, um glorificado videomaker, sabe que está pisando em calos porque o romance de F. Scott Fitzgerald é talvez a mais lida obra de ficção no país, onipresente em currículos da high school, o segundo grau americano. Na véspera da estreia de sua versão maníaca em 3D, despida de sutileza e de jazz, fomos submetidos à piedade do diretor. Uma descendente de Fitzgerald, presente a uma sessão de pré-estreia, o cobriu de parabéns. Ponto para mim, sugere Luhrmann. E, nas últimas duas semanas, mais cópias do romance foram vendidas do que durante a curta vida do autor, que recebeu um cheque de direitos autorais de US$ 13 antes de morrer, em 1940. "Só isto me faz sentir que valeu a pena", disse o diretor, que torrou US$ 100 milhões na produção. Abdicando de seu papel de intérprete de uma obra de literatura tão cara a sucessivas gerações, Luhrmann se parabeniza por vender livros.Certa vez, almoçava em companhia de dois amigos, um americano, escolado no jargão da autoajuda, e um europeu, escolado no humor da autodepreciação. O americano se queixou que não tinha sido encorajado pelos pais, ausentes e vaidosos. Perguntou ao europeu: "Você não sabe como é importante receber um elogio?". "Não me lembro de ter sido elogiado por meus pais e não me importo", retrucou o europeu. Os dois me olharam curiosos e me lembrei que, quando tinha 20 anos de profissão, meu pai abriu uma revista, leu um artigo meu e comentou, sem saber que eu estava no quarto ao lado: "Até que ela escreve direitinho". A frase virou piada entre amigos quando querem endossar algo que disse ou escrevi. Reagirei a vassouradas se algum pseudoterapeuta quiser detectar um profundo déficit de afagos na minha psique.Neste mar de adulação, está difícil distinguir afeto da aprovação passageira.

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