Para Updike, escrever é uma experiência religiosa

O ficcionista e poeta, que publicou cerca de 50 livros a partir dos 22 anos, afirma que a criação literária exige total convicção do autor

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Por Agencia Estado
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John Updike mora numa Shangri-lá que se aferra à dura rocha puritana do litoral de Massachusetts. Aos 68 anos, ele está trabalhando naquele que deve ser seu 50º livro, mais ou menos. Updike se diz "uma pessoa bastante preguiçosa", que só escreve nos dias úteis, entre o final da manhã e o começo da tarde, como sempre fez. Mantém sem muita rigidez essas cerca de três horas de trabalho, para que "tenha tempo de perder uma hora tentando achar a palavra certa". Em novembro, a Enoch Pratt Society (Baltimore) homenageou a esmerada prosa de Updike com o Lifetime Literary Achievement Award. O prêmio, instituído há quatro anos, já foi dado a Saul Bellow, Joyce Carol Oates e John Barth. A Enoch Pratt reúne um grupo de ricos beneméritos que se organizaram para promover o apoio privado à rede de bibliotecas públicas de Baltimore. A associação segue o espírito de Enoch Pratt, o magnata que, em 1886, fundou uma dessas bibliotecas. Updike, cuja obra vem sendo publicada regularmente desde que ele tinha 22 anos, já recebeu todos os mais importantes prêmios literários americanos, entre eles dois Pulitzer de ficção. É secretário da American Academy and Institute of Arts and Letters. E muitos críticos e eruditos sérios acreditam que já deveria ter recebido há muito tempo o Nobel de literatura. Updike e a mulher vivem num isolamento confortável e cortês. Ele concedeu esta entrevista em sua casa, sob a condição de não descrevermos a residência nem revelarmos o endereço. Updike parece um homem extraordinariamente modesto - em especial tratando-se de alguém com tudo para ser cultuado como herói. Diz estar grato à Enoch Pratt Society, "embora seja um pouco desconcertante receber ainda vivo o que parece quase um prêmio póstumo". Além de ser um romancista de grande importância e um poeta digno de nota, Updike faz críticas literárias (e ocasionalmente artísticas) de ampla e profunda autoridade, mesmo que na maioria das vezes tenha se mantido à distância das instituições e periódicos acadêmicos. "Acho que ensinar acaba esgotando grande parte da energia dos escritores." Ele está bem ciente da velha noção romântica de que os bons escritores são meteóricos: sua chama criativa vai rapidamente se apagando após a juventude. Mas é uma noção que ele rejeita, embora possa ver-lhe os indícios. "Os Estados Unidos tendem a produzir escritores que emplacam algumas poucas obras preciosas e então decaem. Veja-se o caso de Melville ou Hemingway. Não há muitas exceções de que a gente consiga se lembrar. Henry James é uma, e na minha cabeça ele permanece como um modelo de escritor americano que perseverou." Carreira - De resto, é uma luta fazê-lo traçar um paralelo entre si mesmo e James. Mas, quando pressionado, Updike sumariza a própria carreira. "Tenho 68 anos, e não há dúvida de que o grosso de minha vida e de meu trabalho já ficou para trás", diz, ponderando muito. "Tenho esperança de que este cavalo velho ainda consiga dar uns coices. Mas o que isso significa para mim é que, de algum modo, o conjunto de uma obra venha a parecer uma realização equilibrada, atestando não apenas persistência, mas também certa visão de longo prazo da vocação que se tenha." "Escrever não é só artesanato", continua, deixando o silêncio pairar momentânea e suavemente no ar de outono. "Não é uma coisa em que pacientemente se acumulam personagens e truques. É uma experiência religiosa que exige total convicção da parte do criador e, como é natural, talvez acabe minguando cedo." O tom de Updike passa uma impressão de espiritualidade inequivocamente séria, sem nenhuma ponta de hipocrisia. Passa também ironia. Sempre, ou quase sempre, ironia e benevolência. Updike possui um desses rostos pouco comuns que, em repouso, parecem mostrar um sorriso latente. Se ele quer ser engraçado, o sorriso se alarga. "Sou prosador e, por isso, não me sinto muito na obrigação de decair", explica, com aquele sorriso conduzindo as palavras. "Mas, quando se faz esse trabalho dia após dia, a gente fica consciente de que, se não se entregar por inteiro, não vai deixar nada de duradouro. Por isso, tenho tentado, à minha maneira, me entregar por completo." Ele não fala com facilidade (pelo menos não aparentemente) sobre valores fundamentais. Embora seja entrevistado com freqüência e dê muitos seminários em universidades, Updike não reage às sondagens como se já tivesse uma barrica de respostas prontas. Pergunto por que escrever. E por que ele escreve. "D.H. Lawrence falava em expandir a capacidade humana de demonstrar empatia", diz Updike, dando a impressão de procurar uma resposta. "E presumo que seja por isso que a gente expõe as idéias - para fazer o leitor refletir um pouquinho quando toma consciência de que existem outros tipos de vida." Updike fica entrelaçando os dedos. Não é que ele retorça as mãos. De alguma maneira, trata-se de um gesto reconfortante. Ele continua, vagarosamente. "A maioria de meus livros tentou explorar a realidade social à nossa volta. Quando você lê um bom livro, de algum modo sente que se tornou uma pessoa melhor, por ter essas imagens na cabeça. Há uma coisa que a história e o jornalismo deixam de lado, e essa coisa é o que a ficção tenta colocar por escrito." A história pessoal de Updike é bem conhecida dos leitores americanos. Nascido em 1932 na região rural da Pensilvânia, ele cresceu na cidadezinha de Shillington, 50 quilômetros a sudoeste de Bethlehem, o modelo para Olinger, cenário de grande parte de sua ficção. Ele foi para a Harvard, fez letras e teve parte ativa na Lampoon, a revista humorística do campus. Ali, desenhou charges e escreveu. Após ter colado grau, passou um ano na Inglaterra, estudando na Ruskin School of Drawing and Fine Art (Oxford). Contratado pela revista New Yorker, produziu uma série de contos, que foram publicados ali. Desde então, foram cerca de 50 livros, inclusive um número substancial de antologias de seus contos, críticas, ensaios e poemas. Elite - Hoje, a maioria dos críticos sérios coloca Updike no pequeno grupo de escritores vivos que lideraram as letras americanas no pós-guerra. Entre esses escritores estão Saul Bellow, Philip Roth e Norman Mailer. Na fileira seguinte da mesma geração, temos E.L. Doctorow e Joseph Heller (que morreu em dezembro de 1999, aos 76 anos). Todos os seis tiveram livros publicados recentemente. E todos eles têm obras que estão nos currículos das universidades e até dos colégios americanos e que enchem prateleiras nas bibliotecas do país. Durante toda a entrevista, Updike, de maneira muito modesta, vai minimizando o enorme tamanho e importância de sua produção. Eu o repreendo por causa disso. Ele fica um bom tempo sem responder. "Não acho que eu dê duro", diz finalmente. "Sou mesmo uma pessoa bastante preguiçosa, se comparado à maioria dos homens que trabalham mais horas, acordam mais cedo e enfrentam condições mais difíceis. Acho que levei a vida na relativa moleza. Evitei dar aulas. Fiquei minhas duas ou três horas à escrivaninha na maioria dos dias úteis, e disso resultaram vários livros. Mas eles foram surgindo devagar, um de cada vez. Não me parece que eu tenha labutado muito." Ele pára para refletir. "À medida que vou envelhecendo, acho que vou continuar escrevendo sobre as pressões que a vida doméstica exerce em todo mundo. Na realidade, sobre o descontentamento com a civilização. E sobre as dificuldades de reprimir as vontades íntimas dentro de nosso corpo mortal e de nossas limitações. Se você quiser que eu seja mais auto-analítico (e não tenho certeza de conseguir fazer isso), acho que havia claramente alguma mágoa, alguma idéia de insuficiência que alimentou minha ânsia criativa. O desejo de fazer uma imagem do mundo, de encontrar algum jeito de fazer um mundo melhor, um mundo aceitável para nós."

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