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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Para onde vai o 'mito'?

O tempo dele já passou. O Brasil é muito maior e mais promissor do que esse embuste

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Por Milton Hatoum
Atualização:

Na tarde do último domingo, conversei com uma amiga francesa numa padaria paulistana, uma conversa em que o riso prevaleceu sobre a tristeza. Melhor assim: a tristeza, quando persiste e cresce, ronda a depressão. “Li vários jornais”, ela disse. “É como se eu estivesse vendo um filme de terror.” Na França, ela havia assistido pela internet à sessão do impeachment, verdadeira lição da nossa mais franca e desabrida baixeza. Lembrou o discurso de uma deputada de Minas Gerais, um palavrório moralista que exaltava a retidão de seu caráter e do de seu marido. No dia seguinte, o marido íntegro, prefeito probo de uma cidade mineira, foi preso pela polícia federal. Recordou esse e outros episódios, como o do helicóptero carregado de cocaína, que pertence ou pertencia a um ex-deputado mineiro, muito próximo de um senador também mineiro. Nossa conversa saltou desse incidente sem vítimas (no helicóptero e nos mandatos dos políticos) à filosofia do café vespertino. O filósofo Paul Ricoeur foi mesmo guru do presidente Emmanuel Mácron?  “Sem dúvida”, respondeu no ato. “O jovem Emmanuel foi assistente editorial de um dos livros mais importantes de Ricoeur: A Memória, a História, o Esquecimento. Macron teve uma boa formação política e filosófica. Anos depois, foi executivo de um grande banco. Agora, na presidência da França, as ideias do ex-executivo prevalecem sobre as do ex-aluno de Ricoeur. Maquiavel é um fantasma que sempre aparece na política.” Pediu uma coxinha de frango e soltou uma risada provocadora: Adoro essa “petite cuisse”. Enquanto ela mordia a petite cuisse, dei uma olhada ao redor: nenhum rosto conhecido na padaria preferida da minha amiga. Lá fora, a claridade diminuía antes do tempo. “Mas a melhor coisa nas eleições na França foi a derrota da filha do Le Pen e da extrema-direita. O horror ao fascismo e uma boa dose de bom senso saíram vitoriosos.” Limpou os dedos gordurosos com um guardanapo e olhou o osso da coxinha no prato de plástico. Ia comer outra, mas preferiu pedir um pão de queijo. “Será que os brasileiros vão usar o bom senso nas próximas eleições?”  Descartes ainda é lido na França, eu disse. Mas aqui o bom senso ainda não vingou. Os discursos da maioria dos nossos políticos não têm método. Ou usam a demagogia e a mentira como método, e isso tem dado certo. “O discurso desse senhor…”, ela disse, fazendo uma careta azeda. “O que alguns chamam de mito. Que ridículo, chamar esse tipo de mito! Li as notícias sobre o auxílio-moradia e o rápido enriquecimento desse político. O mito disse que usou dinheiro público para comer gente. Antes de ler a reportagem da Folha, eu pensava que era uma blague, uma alusão à antropofagia do Oswald de Andrade. Mas o cara falava de sexo. Um candidato à Presidência pode ser tão vil, tão baixo...?” Bom, você ouviu o discurso dele na sessão do impeachment, o elogio que fez a um torturador. E o que ele falou para uma deputada e anda dizendo em palestras é de arrepiar. O apologista do estupro, da tortura, do ódio aos quilombolas e aos indígenas. Esse é o mito… “Mitos negativos sempre voltam”, disse minha amiga. “E às vezes voltam com o que há de mais desumano e hediondo. Mas a máscara desse tipo está caindo, não acha?” Tomara que você esteja certa, Marie-Christine.  “Pois eu acho que o tempo desse mito já passou. O Brasil é muito maior e mais promissor do que esse embuste. Esse tipinho vai para as calendas gregas. Conhece essa expressão?”  É do tempo da minha avó, respondi, recordando o rosto e a voz da matriarca. Outros rostos surgiram no quintal da infância: rostos portugueses, italianos, indígenas. Rostos mestiços. “Calendas gregas”, ela repetiu, em francês. “Mas para derrotar o fascismo é preciso argumentar com palavras duras, com o coração sereno e o riso de Demócrito.” Um estrondo assustou garçons e clientes: a chuva desabou com força, o vento forte e rajadas de granizo rugiam lá fora. Pobre São Paulo, mais uma vez inundada! Os garçons fechavam portas e janelas, minha amiga olhava o lixo arrastado pela água suja que cobria a calçada. A padaria escureceu, a chama de uma vela emitiu um brilho mortiço no balcão, o barulho do temporal contrastava com um silêncio solene, e o pão de queijo esfriava ao lado do osso da coxinha.

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