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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Para não perder o clima

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Atualização:

Para não perdê-lo e não ter de ouvir minha consciência cobrar "poesia numa hora dessas?", larguei o livro que começara a ler, não obstante fosse de ficção, e tentei me sintonizar ao máximo com o maelström deflagrado pelo MPL, sem abrir mão da leitura, que, afinal, é meu ganha-pão. Mas o que ler sem culpa numa hora dessas? Ainda hamletiava a questão quando, aproveitando-me do que podia ser meu último relax escapista em muito tempo, mergulhei, como sempre faço às segundas-feiras, na telessérie Mad Men. E não é que até lá deparei com passeatas, protestos e truculência policial? A certa altura do 10.º episódio da temporada em curso, explodia aquele histórico conflito que quase melou a Convenção do Partido Democrata de 1968 em Chicago e proporcionou a Norman Mailer uma memorável reportagem literária, Miami e o Cerco de Chicago. Na época, foi um choque: bravos e brabos estudantes entrando na borracha e indo em cana porque protestavam contra a guerra no Vietnã. Maio de 68 demorou três meses para chegar à América.Apesar do título dickensiano (A Tale of Two Cities/Um Conto de Duas Cidades), as cidades contrapostas no episódio não eram Londres e a Paris da Revolução Francesa, como no romance, nem Chicago e Miami (palco da Convenção do Partido Republicano), como no relato de Mailer, mas Nova York e Los Angeles, itinerário dos mad men Draper e Sterling, atrás de um cliente de peso na Califórnia e pegos de surpresa pelos tumultos que muito contribuiriam para dar fim à guerra no Sudeste Asiático, o Passe Livre da estudantada americana. Já de volta ao Brasil 2013, socorri-me do mais completo ensaio que conheço sobre a força e a fúria das manifestações populares: Massa e Poder, de Elias Canetti. O calhamaço de 500 páginas, que não relia há décadas, confirmou minhas suspeitas de que seria um valioso apêndice teórico ao que as nossas televisões (e os canais alternativos online, MidiaNinja, Pos_TV) transmitiam. Para cada demonstração de medo ou pânico pelo que pudesse acontecer, cada confissão de perplexidade, cada confronto com a polícia, cada cena de vandalismo, encontrei uma explicação do mestre búlgaro.Canetti, que despertou para o tema assistindo às arruaças nazistas em Berlim e Viena, diferencia massa de malta. Os manifestantes pertencem à primeira categoria; os baderneiros, à segunda. Hordas de número reduzido, vagando em pequenos bandos, corja que não consegue crescer, pois no vazio que a circunda inexistem pessoas que possam e queiram juntar-se a ela, eis, em síntese, como Canetti enquadra os vândalos que, com sua descontrolada ânsia destrutiva, amiúde se aproveitam da indignação popular. A certa altura, confesso, cansei. E antes de cair na tentação de reler Wilhelm Reich e suas ideias sobre a libido da súcia ensandecida, impus meu marco regulatório: a ficção me basta, me ilumina, me consola dos sobressaltos do real inevitável e, dependendo do livro, não me deixa com culpa. Qualquer hora é hora de ler, por exemplo, A Educação Sentimental. Se ninguém explicou as agitações de Paris durante a Revolução de 1848 melhor do que Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, nenhum outro escritor soube retratá-la com mais riqueza do que Flaubert. Mas, e as agitações daqui? As mais próximas e aparentadas com as do MPL, a Passeata dos Cem Mil, a Campanha das Diretas e o "Fora Collor", não tiveram o seu Flaubert, mas confesso um carinho especial por um romance para adultos de Ana Maria Machado, Tropical Sol da Liberdade. Publicado há 25 anos pela Nova Fronteira, é uma das reconstituições mais sensíveis da reação dos estudantes e das ruas às exorbitâncias da ditadura militar e, em particular, da Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, que até a semana passada havia sido a maior manifestação pacífica de protesto popular ocorrida no Rio. Romance à clef e autobiográfico, pois a autora viveu intensamente tudo aquilo, sua mais notável singularidade é o destaque dado à importância da figura da mãe (e, por extensão, das mulheres) no processo de enfrentamento com o autoritarismo. Ao relê-lo, dias atrás, duas coisas me chamaram a atenção: a relativa amplitude e a organização ecumênica do movimento de 68, com suas assembleias de estudantes, jornalistas, intelectuais, artistas, suas divisões de tarefas, e a bronca dos estudantes com a "imprensa burguesa", já naquela época por eles acusada de "distorcer os fatos". Testemunhei-as de perto, contemporâneo que fui do golpe e (até vítima de) suas consequências , mas só as relembrei, para efeito de comparação, ao reler Tropical Sol da Liberdade.Depois pensei em outro marco do protesto no fluxo do chienlit parisiense. Não mais aqui, mas ainda nestas bandas do mundo (México, 2 de outubro de 1968) e com um desfecho radicalmente oposto ao da Passeata dos Cem Mil, tanto que entrou para a história como "o massacre de Tlatelolco". Foi o maior movimento social na Cidade do México, dispersado à bala por forças do exército e um grupo paramilitar, em plena Praça das Três Culturas, no Tlatelolco, deixando um saldo de centenas de mortos, a maioria estudantes. Um trauma nacional que deixou cicatrizes profundas na psique do país e até hoje reverbera na ficção latino-americana. Aí me lembrei de uma uruguaia.Auxilio Lacouture, mãe hippie adotiva de poetas e artistas mexicanos, pressentiu a tragédia com três meses de antecedência, durante uma inesperada e violenta invasão da Universidade Nacional Autônoma do México por tropas militares. Ela viu tudo e, ao mesmo tempo, não viu nada, já que na hora do ataque estava sentada na latrina do banheiro da Faculdade de Filosofia e Letras, a ler poesias do ultraísta espanhol exilado Pedro Garfias. Auxilio é a divertida narradora de Amuleto, romance do chileno Roberto Bolaño, que, para mim, evoca como nenhum outro o 68 mexicano. Esse você não precisará procurar no sebo. De todo modo, não saia do clima. Nem abandone a ficção.

Opinião por Sérgio Augusto
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