PUBLICIDADE

Para não esquecer

Paulo José dirige Murro em Ponta de Faca, peça pouco conhecida de Augusto Boal

Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

Difícil descolar Augusto Boal (1931-2009) da imagem que ele mesmo criou para si. Invariavelmente, falar desse dramaturgo e diretor significa incorrer também na trajetória política do Arena, em seu distanciamento épico, em seu teatro de resistência. Existe, porém, um Boal ainda a ser descoberto. Capaz de vislumbrar aflições individuais, de se aventurar por dramas quase "burgueses". Murro em Ponta de Faca, espetáculo que entra em cartaz hoje no Sesc Belenzinho, traz essa faceta do autor que pouca gente conhece. Talvez só Paulo José. Foi ele quem assinou a primeira e única montagem do texto em 1978. E é ele quem retorna agora, 33 anos depois, para conduzir a nova versão. Encenada por um grupo de atores paranaenses, a peça estreou em abril deste ano durante o Festival de Curitiba e já cumpriu temporada no Rio de Janeiro. Completamente distinta das obras mais conhecidas de Boal, como Arena Conta Zumbi ou Arena Conta Tiradentes, Murro em Ponta de Faca evoca uma angústia carregada de tons pessoais. Sem tirar a política do horizonte, a peça trata do exílio - uma questão premente na década de 1970. Mas faz tudo isso a partir de uma perspectiva muito particular: a do próprio autor. Boal estava fora do Brasil quando escreveu a Othon Bastos. Pelo correio, enviava um envelope com uma peça de teatro e uma recomendação: era Paulo José quem devia dirigir a montagem daquele seu texto. "Convivi com o Boal de 1961 a 1968. Fizemos muita coisa juntos", lembra o ator e diretor. Sua estreia em São Paulo, ele recorda, foi justamente no elenco de A Revolução na América do Sul, texto do criador do teatro do oprimido, encenado pelo Arena. Em Murro em Ponta de Faca, acompanha-se a via-crúcis de três casais de brasileiros banidos do País. Distintos uns dos outros - são burgueses, operários e intelectuais - são obrigados a viver na mesma casa. E, a despeito das diferenças, descobrem-se ligados por um sentimento comum: não pertencem a lugar nenhum, vivem em um tempo suspenso. "Boal costumava manter certa distância em relação aos seus personagens, um olhar irônico. Mas, aqui, é como se ele se identificasse, tivesse uma afetividade por eles. É um texto sobre exilados escrito por alguém que também estava no exílio", comenta o diretor.À época, o dramaturgo vivia na França. Depois de enfrentar abertamente a ditadura, acabou preso e exilado em 1971. Estabeleceu-se primeiro na Argentina - onde morou por cinco anos - e, na sequência, em Portugal. Só retornou ao Brasil em 1984, após a anistia. Mas morreria sem nunca ver essa obra ser levada à cena. Sem data. Ao decidir remontar a peça, Paulo José não fez adaptações. As ações continuam localizadas nos anos 1970. Todas as canções escolhidas - títulos como Meu Caro Amigo e Apesar de Você - também cumprem a função de evocar o período. Nem por isso, se pode dizer que o encenador tenha optado por criar uma versão datada. Ou sem significado para os nossos dias. Primeiro, porque a temática do exílio transcende a situação nacional e mostra um fragmento do que convulsionava toda a América Latina. Depois, porque mira a ferida sobre a qual falamos pouco. Mas que persiste aberta. "Essa ideia de que o Brasil é um país cordial é uma mentira", diz o diretor. "Nossa história é violentíssima. Não é por revanchismo nem por vingança, mas não podemos esquecer."O caminho escolhido para a encenação também ambiciona aproximar Murro em Ponta de Faca das novas plateias. Se os exilados brasileiros não existem mais, a montagem tratou de manter-se atual ao enveredar por um tom existencialista. Como se fosse o retrato de despatriados de qualquer época ou lugar. "Quando fiz a primeira vez, acho que era um pouco mais frio. A peça, agora, acabou ficando mais emotiva", comenta Paulo José. "Em muitos sentidos, a doença (o mal de Parkinson, que o acomete há 20 anos) te liberta, te faz perder o pudor."MURRO EM PONTA DE FACASesc Belenzinho. Rua Padre Adelino, 1.000, telefone 2076-9700. 6ª e sáb., às 21h30; dom., às 18h30. R$ 24. Até 18/9.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.