PUBLICIDADE

Para escritor, Nostradamus foi um grande poeta

Por Agencia Estado
Atualização:

A velocidade dos acontecimentos foi incontrolável - horas depois dos atentados terroristas contra o World Trade Center e o Pentágono, já circulavam pela Internet versos proféticos atribuídos a Nostradamus, com previsões que se encaixavam nos terríveis acontecimentos. Mesmo com o desmascaramento (a mensagem combinava frases forjadas), o interesse por suas profecias provocou uma corrida às livrarias, virtuais ou não, o que disparou a venda de obras - em Nova York, três livros que tratam de Nostradamus já figuram na lista dos 25 mais vendidos pelo site Amazon, situação semelhante à da maioria das livrarias da cidade americana. "Todos buscam respostas para o futuro, mas, na verdade, muitos dos escritos de Nostradamus tratam é do passado", comenta o escritor italiano Valerio Evangelisti, autor de uma trilogia em que conta a história romanceada do mago francês. Dois dos três volumes já foram editados pela Bertrand Brasil, ambos com o título principal de Magus: O Presságio (406 páginas, R$ 38) e A Astúcia (408 páginas, R$ 38). O terceiro livro, O Abismo, deverá ser lançado até o fim do ano. Tamanha intimidade com o assunto permitiu a Evangelisti se assustar com as formas errôneas com que os escritos de Nostradamus foram interpretados. A começar pela mensagem divulgada pela Internet ("A terceira grande guerra vai começar quando a grande cidade estiver queimando" e " os dois irmãos tiverem sido separados pelo caos"), que se descobriu ser uma brincadeira feita por um estudande canadense, em 1990, e que alguém espalhou agora pela rede mundial. Evangelisti não esconde que escreveu as mais de mil páginas em 1999 sob encomenda, aproveitando a mudança de século. A rigorosa pesquisa, porém, permitiu que o cético Evangelisti ("Como escritor, não creio necessariamente no tema da minha história") descobrisse um grande poeta, em vez de um profeta exemplar. "Muitas de suas previsões dizem respeito à época em que ele vivia e não do nosso tempo", afirma, em entrevista, por e-mail. Nascido em Saint-Rémy de Provence, na França, Michel de Nostradame (1503-1556) tornou-se mais conhecido pela forma latinizada de seu nome, Nostradamus. Era um sujeito de estatura média, corpo atarracado, espírito alegre e um rosto marcado pela testa alta, nariz reto, olhos cinzentos e uma barba longa e espessa. De memória prodigiosa, era apaixonado por letras, medicina e ciências, inclusive as ocultas, como astrologia. Tinha suas visões em seu quarto, em uma bacia de água. Sua obra mais famosa, Centúrias, é marcada por um texto hermético - escrita em francês arcaico, é ainda permeada por vocábulos latinos, gregos e hebraicos, e, em muitas vezes, seu estilo funde palavras, em uma espécie de esperanto mágico. "Isso permitiu uma infinidade de interpretações de suas profecias ao longo dos séculos", comenta Evangelisti. Agência Estado - Depois de conviver intensamente com a história de Michel de Nostradamus, como o senhor analisa o vínculo das "profecias de Nostradamus" e os grandes acontecimentos mundiais recentes, como o atentado terrorista a Nova York? Valerio Evangelisti - Nostradamus previa guerras e catástrofes, mas grande parte de seus textos se referia à calamidades de seu tempo, como a guerra na França entre católicos e protestantes. Não acredito que alguma de suas profecias possa ser relacionada com os atentados nos Estados Unidos ou a qualquer outra tragédia recente. E ainda circularam, pela Internet, versos que ele nem escreveu naquela ordem. No início do segundo volume de sua trilogia, "A Astúcia", no momento em que se encontra com dois homens e uma mulher, Nostradamus recita um verso que anuncia a chegada do deus Marte no sétimo mês de 1999, quando instalaria seu reino, "espalhando a guerra como se esta fosse um caminho para a felicidade". Novamente, é exagerado comparar a realidade com a veracidade destes versos? Os acontecimentos do ano de 1999 apontados pelos versos se referiram ao eclipse solar e à guerra de Kosovo; os de 2000 têm relação com a queda do Concorde, na França. Em cada ano, é possível descobrir eventos que teriam sido descritos por Nostradamus em alguma profecia. Até porque Marte sempre deverá reinar sobre a terra. É possível identificar esse "deus" com alguma personalidade da atualidade? Pelo que Nostradamus chama de "rei do terror", se poderia pensar hoje em Bin Laden. O fato é que, de "reis do terror", existem vários. Um palestino, por exemplo, pensaria em Sharon. Nem Bin Laden, nem Sharon, no entanto, têm o status de ser esse rei (nem mesmo Bush, para ser sincero). Depois de ter passado por dois anos com numeração especial (1999 e 2000), o senhor acredita que agora vivemos uma era profética? Até o momento, não é possível perceber isso. Vamos aguardar a 2222... Qual seria a previsão mais desconcertante de Nostradamus? Sempre é citada aquela relativa à Revolução Francesa (De nuict viendra par la forest de Reins..., IX 20). Na verdade, hoje é amplamente demonstrado que se tratava de um equívoco e que todos os lugares citados ficavam na região em que Nostradamus habitava, inclusive uma das 20 Varennes existentes na França no seu tempo. Outras profecias famosas acabaram desmentidas pela crítica científica. Muitos dos versos de Nostradamus, muito copiados pelos autores latinos, referem-se a acontecimentos não do futuro, mas do passado. O senhor acredita que Nostradamus era, acima de tudo, um grande poeta por saber como ser compreendido ao longo dos séculos? Se sou cético a respeito das profecias, tenho, no entanto, a convicção de que Nostradamus era um grande poeta, com uma força simbólica extraordinária. Afinal, tratava de temas eternos, como a violência e o fanatismo, e usava o recurso da metáfora, conseguindo ainda nos falar hoje com o mesmo vigor daquele tempo. Por que o senhor se apaixonou pela vida de Nostradamus? Porque se tratava de um ótimo tema para um romance histórico com aspectos fantásticos. Mais que Nostradamus na verdade, interessava-me o período em que ele viveu. Em sua pesquisa, o senhor descobriu algum episódio inédito na vida de Nostradamus? Fiquei surpreso ao descobrir, por meio de sua correspondência, que, mais que um astrólogo, ele era um cultor de magia negra, em particular da magia latina e egípcia. Este aspecto de sua personalidade nunca tinha sido revelado. O demônio Parpalus, que aparece em meu romance, era sempre evocado por Nostradamus. As suas cartas, hoje muito difíceis de serem encontradas, são a prova disso. Por que Nostradamus é apontado como um profeta obscuro? Ele escrevia de uma forma obscura e o fazia bem: caso contrário, não o leríamos até hoje. Além disso, seus versos, escritos daquela maneira, possuem o fascínio dos sonhos e pesadelos. Qual a lição que podemos tirar dos escritos de Nostradamus? Aquela elementar, mas sempre verdadeira: a iminência de uma guerra é eterna, assim como os homens de boa vontade que tudo fazem para evitá-la. Nostradamus foi convidado pela rainha Caterina de Médice para fazer seu horóscopo. Como ele se relacionava com as personalidades daquele tempo? Nostradamus gozava de boa reputação e foi até nomeado médico da corte. Foi raramente a Paris pois, por sofrer da gota, era-lhe penoso viajar: a realeza francesa é que ia ao seu encontro para reverenciá-lo. Em vida, teve mais amigos que inimigos - e amigos importantes. O que o senhor conhece de esoterismo? Devido ao gênero narrativo a que me dedico tenho uma grande biblioteca de temas esotéricos. Mas o material que uso para os meus romances não corresponde às minhas convicções; ao menos, nem sempre. Na vida particular, mais que a verdade oculta, prefiro cultivar muitas dúvidas.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.