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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Papos-furados

Conheci e entrevistei muitas de minhas admirações e outras nem tanto, mas dos tête-à-têtes que deram chabu a gente não só não esquece como, talvez por masoquismo, lhes reserva uma gaveta especial na memória

Atualização:

Conforme ia dizendo antes de ser desviado para um tour hitchcockiano pela Riviera Francesa, na coluna passada, Graham Greene morreu antes que eu pudesse entrevistá-lo, damn it. Por coincidência, domingo passado o vi fazendo uma aparição no terço final de A Noite Americana, de Truffaut, que degustei na casa de amigos. Já me havia esquecido dela: o escritor no papel de um agente de seguros britânico contratado pela produção de Je Vous Presente Pamela, o filme dentro do filme de Truffaut. No dia seguinte constatei que no extenso artigo sobre A Noite Americana que publiquei no semanário Opinião, em 1973, passara batido pela fugaz e quase imperceptível “ponta” de Greene. 

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Ignoro se Truffaut e Greene eram amigos ou se o cineasta admirava o escritor com a mesma intensidade devotada a Jean Vigo, Renoir, Ophuls e outros homenageados no filme. De qualquer modo, Greene, além de apaixonado por cinema (foi crítico da revista The Spectator de 1935 a 1939), vivia perto de Nice, onde A Noite Americana (e, por tabela, Je Vous Presente Pamela) foi rodado, mais precisamente nos estúdios Riviera, que na época ainda se chamavam de la Victorine. 

Mas o fato é que não consegui entrevistar Greene. Não foi minha primeira frustração nessa modalidade jornalística. Conheci e entrevistei muitas de minhas admirações e outras nem tanto, mas dos tête-à-têtes que deram chabu a gente não só não esquece como, talvez por masoquismo, lhes reserva uma gaveta especial na memória. 

Mary McCarthy, por exemplo. Fascinado por sua inteligência e postura política – mais do que por suas proezas ficcionais, à exceção de O Grupo (desse até Otto Maria Carpeaux gostou) –, tentei que me recebesse em Paris, já lá se vão 42 anos, e o máximo que logrei foi uma educada recusa epistolar, por ela (ou algum portador) deixada na portaria do meu hotel, que ficava e parece que ainda fica defronte o 74 da Cardinal Lemoîne, celebrizado por Hemingway. 

Ela morava num amplo apartamento da rue de Rennes, 141, e, conforme esclarecera na cartinha, tinha por norma não conceder entrevistas quando se metia a escrever um livro. Queria manter-se ligada ao seu novo projeto (“stick by it”), intrigando-me com o emprego da preposição “by” onde eu até então acreditava só ser possível empregar “to” ou “with”. Meu amigo Geraldinho Carneiro, tradutor de sonetos de Shakespeare, também se surpreendeu com o “stick by it”.

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Minha musa vassariana, que acabara de lançar uma coletânea de ensaios sobre o Caso Watergate (Mask of State), enfronhara-se sem trégua no romance Canibais e Missionários, pioneiro na abordagem do terrorismo, que só seria publicado cinco anos depois e logo traduzido pela Nova Fronteira. 

Na mesma temporada, somei outro papo-furado à minha coleção. A caminho da Itália, obtive com a Bompiani o endereço romano de Gore Vidal: Via della Torre Argentina; deixei-lhe um bilhetinho na caixa de correspondência, que ficou sem resposta. Em Ravello, na Costa Amalfitana, onde ele passava a maior parte do ano, fiz uma segunda e igualmente frustrada tentativa. Pelo dono do hotel Palumbo, um grisalho italiano gênero Rossano Brazzi, soube que Vidal e seu companheiro Howard Austen estavam, havia meses, na Califórnia. Não tinha por que duvidar do informante, amigo de longa data de “Gorino” (era assim que ele e Fellini chamavam o escritor), mas pouco ou nada confiável, segundo Vidal, que só conseguiria entrevistar 13 anos depois, assim mesmo por telefone, ele de Roma, eu do Rio, a serviço da Folha de S. Paulo. 

O Palumbo é um patrimônio histórico e arquitetônico de Ravello. Construído no século 12, é o principal concorrente da Villa Cimbrone, cujo belvedere debruçado sobre o Golfo de Palermo tem a vista mais bonita do mundo, dizia Vidal, fazendo coro com a patota de Bloomsbury (Virginia Woolf incluída), D. H. Lawrence, Eliot, Greta Garbo e Leopold Stokowski (que lá viveram dias memoráveis nos anos 1930). Introduzido por um jardim, segundo consta redesenhado por Vitta Sackville-West, o mirante, apelidado de “terrazzo dell’infinito”, justifica com sobras sua fama. 

John Huston o explorou bem em algumas cenas de O Diabo Riu por Último (Beat the Devil), com Humphrey Bogart e Jennifer Jones flertando sobre o infinito, pena que em preto e branco, pois nada se compara aos indistintos dois azuis, do céu e do mar, que de lá se descortinam. No filme, todo rodado em Ravello, os personagens se hospedam no Palumbo. Por acaso fiquei no mesmo do primeiro andar em cuja porta Bogart deixa Jennifer Jones, antes de irem dormir. Ter sido locação, 21 anos antes, daquela excêntrica comédia de Huston ainda provocava suspiros no hoteleiro, que nem depois da quinta dose de Sambucca parava de elogiar o “magnífico piso” do seu salão de entrada. 

Achei-o bonito, mas gostaria de ter conhecido os azulejos originais, arrancados a toque de caixa por ordem do cineasta. “Fotografam mal em preto e branco,” justificou Huston a agressão arquitetônica, substituindo-os por outros, oito séculos mais novos e com maior fotogenia monocromática. Não li essa história na autobiografia de Huston, ouvi-a do próprio Vidal, que nunca se conformou com o abuso do cineasta e muito menos com a cumplicidade do dono do hotel. 

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Na semana em que, a pedido de Luiz Schwarcz, acompanhei o escritor e seu companheiro num eclético passeio pelo Rio, tocamos mais de uma vez no assunto, relembrando outros abusos da mesma natureza cometidos pela arrogância cinematográfica. Para dar uma cor local à conversa, relatei-lhe o episódio da derrubada de um centenário cajueiro nordestino por uma produção brasileira, não porque fotografasse mal em preto e branco, até porque o filme era em cores, mas porque a frondosa árvore atrapalharia uma angulação de câmera programada para a principal sequência do dia.

Faz um bom tempo que aposentei, compulsoriamente, meus dotes de cicerone. Já mostrei a muy leal cidade olímpica a John Updike, Guillermo Cabrera Infante (junto com Matinas Suzuki), Fritz Lang, Emilio Fernandez, e, primeirão da lista, François Truffaut. Foi sempre divertido. Um dia, se me pedirem, darei detalhes.

Não me invejem. Invejem Vinicius de Moraes, que só em 1942 bateu perna Rio afora com Waldo Frank (que lhe deu o mote de Orfeu da Conceição), Falconetti (a Joana D’Arc de Dreyer) e Orson Welles. Orson Welles!

Opinião por Sérgio Augusto
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