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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Pão na chapa entre nuvens

Amada Fernanda, aquele homem não representa a opinião do Brasil, tenha certeza

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Atualização:

Foi uma curiosa sensação a 10 mil metros de altura, entre as nuvens. A comissária me entregou pão na chapa e mil sensações me vieram. Pão na chapa em avião? Isso mesmo. E me vi na hora dentro de um romance meu. Mas, antes, falemos dos dias atuais. Existe aquecimento global? Não existe? Nas cabeças poluídas desse barco furado de insensatos à deriva que se tornou Brasília, a terra é plana, Theodor Adorno escreveu as letras dos Beatles, japonês tem p... pequeno e o que os satélites sensibilíssimos focam não são queimadas, mas sim o acender de fósforos, de isqueiros, de luzes de flashes dos celulares e de vaga-lumes voando pela mata. 

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Chegaram a dizer que era o brilho dos olhos dos amazonenses. Seria poesia, não fosse ideologia malsã, santa ignorância ou perversidade partida talvez do “gabinete do ódio” denunciado semana passada pela mídia. Ah, a mídia!

Tudo isso me trouxe de volta à tona meu romance de 1982, Não Verás País Nenhum, passado num Brasil futuro em que o Amazonas se tornou um deserto, considerado a Oitava Maravilha do Mundo, quando a água não existe mais, a comida é toda industrializada, factícia, a liberdade é restrita, a violência é dominante, consentida. São Paulo é uma cidade gradeada, uma jaula só, repleta de câmeras, de luzes que se acendem quando você se aproxima de uma casa ou um portão. Ninguém está seguro. Para deixar seu bairro e penetrar em outro, você precisa de credenciais ou de fichas de acesso, a cidade é toda dividida em guetos. Falando nisso, a moda hoje não são os grandes condomínios fechados?

Isso foi escrito no final dos anos 70 e tem muita ironia, humor negro, sarcasmo. Poucas vezes deixei a imaginação e o absurdo fluírem com tanta força. Ainda que tenha me apoiado em milhares de recortes e de livros de pesquisa para me basear. Tudo se tornou realidade.

Uma das coisas que adorei inventar – será que fui premonitório, eu, simples caboclo araraquarense? Há no romance, à venda nos supermercados, milhares de cheiros, tubos de spray, desses para suavizar o ar. Tudo factício, palavra que criei a partir de fictício. As empresas criaram esses sprays aromatizados porque a natureza não existe mais, não chove, não venta, não há brisas que venham de laranjais em flor. 

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Assim, os brasileiros têm à disposição cheiro de ovo frito, de terra molhada pela chuva, de casca de mexerica espremida, feijão temperado, cedro recém-serrado, folha de eucalipto esmagada, flor dama-da-noite, abacaxi sendo descascado, leite derramado na chapa, café sendo torrado em final de tarde e assim por diante.

Duas semanas atrás, embarquei para Santa Maria, RS, para a Festa Literária da cidade, Flism, bravamente estruturada por Gerson Werlang e sua mulher Raquel Trentin. Três dias apenas, mas intensos, cheios de conversas, palestras e debates. A intenção dos dois professores é recuperar o espírito da Jornada de Passo Fundo e outras que por décadas trataram de livros, autores e formação de leitores. Para mim, a Flism significou resistência em momento difícil. Chegamos a um ponto extremo de polarização e descalabro, em que o diretor da Funarte, oportunista e sem caráter, coloca gasolina na fogueira ao chamar Fernanda Montenegro de “sórdida” e “mentirosa.” Amada Fernanda, aquele homem não representa a opinião do Brasil, tenha certeza.

Gerson Werlang é autor de um curiosíssimo livro que deveria chegar ao Rio e a São Paulo: A Música na Obra de Erico Verissimo, inusitado ensaio, bem documentado e original. Alguém sabia, por exemplo, que cada parte do romance Saga, de Erico, veio marcada nas primeiras edições por trechos de partituras musicais? Foi a forma que “Erico encontrou para estabelecer o diálogo intertextual musical literário que dava pistas sobre a estruturação da obra e sua ligação com a música”, no dizer de Gerson, que é também músico profissional. As partituras sumiram depois da quinta edição e nem a família notou. Envolvida em montanhas, Santa Maria não é só a Boate Kiss é, principalmente, uma fantástica universidade com 20 mil alunos e belos restaurantes, onde as conversas são embaladas por belos vinhos.

Mas e o pão na chapa? No avião entre Porto Alegre e Santa Maria, a comissária chegou com uma bandeja de guloseimas (diria minha mãe) e me ofereceu balinha de goma, batata frita, torresmo ou pão na chapa. Quase dei um pulo. Pão na chapa? No avião? Aquele das padarias paulistanas pela manhã? Quentinhos, perfumados, macios e levemente dourados, a manteiga ainda a escorrer, quando bem feitos. Pão na chapa é arte maior do bom chapeiro dizem Nildo e Alemão, aqui da nossa CPL.

Pedi torresmo e pão na chapa. O primeiro é feito com trigo, segundo li, e uma essência de bacon que reproduz o gostinho do torresmo crocante, seco. E o pão na chapa, em sua embalagem aluminizada, é pão na chapa factício, diria meu personagem de Não Verás.

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Lembra vagamente a delícia de uma manhã no balcão de padarias a dez mil metros de altura, atravessando nuvens. Comi uma espécie de crouton fino, seco, que não era desagradável, mas necessitou de uma cervejinha lager gelada. Assim, a atmosfera da literatura se refletiu no voo. Nosso cotidiano é cada vez mais criativamente fake. Fazer o quê? Mas penso, glória seria se um dia tivéssemos no avião suco de pitangas frescas do pomar de Cornélio Brennand no Recife.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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