EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Palavras da terra e do ar

Se alguém me acusar de ser um nefelibata, indivíduo com cabeça nas nuvens, terá razão

PUBLICIDADE

Atualização:

O texto diante dos seus olhos foi escrito a bordo de um avião. A agenda no solo me obriga a produzir no céu. Se alguém me acusar de ser um nefelibata, indivíduo com cabeça nas nuvens, terá razão.

PUBLICIDADE

Nefelibata pertence à categoria de palavras que indicam idade. Quem a usa, provavelmente, lia a seção “enriqueça seu vocabulário” da revista Seleções.

Monteiro Lobato, no livro Emília no País da Gramática, conferiu um imenso prazer à descoberta da língua. O autor de Taubaté tornou inesquecível o diálogo atrevido de Emília com os arcaísmos como a palavra bofé (sinônimo de francamente). As definições que o rinoceronte Quindim sofisticava a boneca aplainava.

Nefelibata e bofé poderiam andar ao lado de energúmeno no campo indicativo de antiguidade do usuário. Energúmeno tem sonoridade dupla: é polissílaba e proparoxítona. A professora Juraci assegurava-me que as proparoxítonas podiam ser chamadas de esdrúxulas. Eu era criança e fiquei assombrado! Há coisa mais saborosa do que apontar para algo e dizer que é esdrúxulo? A palavra sai sonora, ressuscitada como um Lázaro em mortalha, reencontrando, atônita, a luz do dia.

Visualizem a seguinte cena: numa rusga de tráfego, um motorista grita - sacripanta! - a um infrator que lhe atravesse a rota. Imaginem se o atingido pela pedrada vocal redarguisse que o insulto é estapafúrdio? Após um sagrado silêncio, talvez, poderiam se entreolhar com certo afeto parnasiano. Talvez abandonassem a animosidade e reconhecessem um elo. Convenhamos: palavrões que invocam a moralidade da genitora ou especulem sobre orientação sexual do condutor são de uma banalidade constrangedora. Mas sacripanta? Estapafúrdio? Raros, meus dominicais leitores, raros. São insultos preciosos, quase elogios.

Publicidade

A inteligência atual não é menor do que aquela que brilhava nos discursos de Rui Barbosa. Antes, a riqueza vocabular era um indicativo de sólidas leituras e formação preciosa. Sinonímia era um termômetro de bacharéis respeitáveis e de boa família. Hoje, o tom direto é a virtude cardeal. O homem de letras esmerava-se para engastar uma rima. A frase era lapidada. A forma era tão fundamental quanto o conteúdo.

Suspeito que havia mais tempo livre. Num mundo de nomes curtos como o nosso, como explicar uma mulher chamada Capitolina, imortalizada por Machado como Capitu? Hoje, a esposa de Dom Casmurro atenderia pelo apelido Cá... De oblíqua e dissimulada, ela passaria a vesga e falsa. A modernidade asfaltou a estrada vocabular. Nada mais é engastado. Foram assassinadas as nuanças. Os mosaicos receberam cal.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Um admirável mundo novo implica vocabulário distinto. Expressões tradicionais que indicavam a convivência peninsular com a tradição árabe, hoje, provocam equívocos. Já desejei “Oxalá consigas” e recebi como resposta: “e Iemanjá me ajude também!”

A língua é viva e dinâmica. A gramática normativa é antes necrotério do que berçário. O uso transforma e recria. Parte da beleza da última flor do Lácio é perceber o movimento histórico das palavras e dos sentidos.

Exemplo hipotético: Padre Vieira seria reprovado na redação do Enem. O “imperador da língua” (como o descreveu Pessoa) acharia insuficiente o espaço para expressar coesão e coerência de qualquer ideia. Usaria regências que ficaram ultrapassadas. Com suas orações subordinadas, seria considerado confuso pelo corretor. Isso não é trágico, é histórico.

Publicidade

Não reclamo das formas contemporâneas de comunicação. Um bom usuário da língua deve saber utilizar diversos códigos para distintos objetivos e públicos. Passar do sermão da Sexagésima para uma frase de WhatsApp é importante. Um haicai não é inferior a um poema épico. Por vezes, um “pô” ou “nem” podem ser tão expressivos e comunicativos quanto as dezenas de páginas que Proust utilizava para descrever o som da colher na xícara.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

A leitura de Alexandre Herculano ou Euclides da Cunha não me torna melhor como pessoa. Porém, se consigo entender um texto com expressões alicerçadas em outro código de comunicação, minha capacidade de transitar entre mundos aumenta. Ler apenas aquilo que já conheço com termos usuais é como levantar pesos de cem gramas na academia: o resultado é a monotonia.

Mário de Andrade ironizou, na carta às icamiabas (Macunaíma), que nosso país tinha tal opulência, que tínhamos duas línguas: “a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra”. Nossa opulência linguística aumentou. A língua da cidade de Portugália (segundo Lobato) tem novos loteamentos: o português das escolas, o da internet, o dos jornais, o oral, o dos rostinhos com emoções (um dos bairros com maior potencial de expansão).

Uma boa educação deveria trabalhar a beleza do pretérito mais-que-perfeito e a compreensão do quase fóssil modo subjuntivo. Ao mesmo tempo, nada impediria agradecer uma mensagem com o semítico (sem vogais) anglicismo: tks! Emília adoraria, Rui Barbosa não. Todo nefelibata deveria conhecer Taubaté. É preciso visitar os muitos bairros da nossa língua portuguesa. Um bom domingo a todos vocês!

Opinião por Leandro Karnal
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.