Paisagem interior e exterior

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Por Redação
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Numa quarta-feira, 18 de julho, precisava enviar a última prova revista de Estive Lá Fora ao editor Marcelo Ferroni, para cumprir os prazos estabelecidos. Mesmo o horóscopo garantindo que a Lua Nova do dia seguinte impulsionaria minha carreira para um novo caminho, o desejo era adiar essa entrega. Fazia dezoito meses que eu trabalhava no romance, quase sem interrupções, mas na derradeira leitura me pareceu que ainda havia muito a ser feito. Meu primeiro conto Lua Cambará, escrito em 1970, saiu publicado no livro Faca apenas em 2003; e Eufrásia Meneses, de 1973, somente em 2005, no Livro dos homens. Portanto, eu me habituara aos adiamentos, talvez por um gosto em garimpar palavras, dar polimento às frases e maturar as narrativas. Ou, mais provavelmente, porque tornar-me escritor foi sempre um dos conflitos básicos de minha vida. A Medicina me parecia bem mais adequada para servir aos meus semelhantes.Ali estavam as 296 páginas do romance que eu pensava escrever desde que cheguei ao Recife para candidatar-me à universidade, e deparei-me com a ditadura militar, mais evidente e chocante do que no interior cearense, de onde eu viera. O terror adquiriu feições diferentes nas cidades brasileiras, recrudescendo em tempos desiguais, conforme a resistência política de cada Estado. No Recife, marcado pelas revoluções de 1817 e 1824, com um saldo de mortos e banidos que a história oficial não costuma referir, as pessoas pareciam habituadas à luta. Já no primeiro dia após o 31 de março, estudantes de Engenharia marcharam até o Palácio das Princesas e foram recebidos a bala, morrendo dois jovens no embate. Em 1969, ano em que cheguei à cidade, as forças de repressão haviam assassinado o padre Henrique, de apenas 28 anos, um sociólogo que trabalhava com o arcebispo dom Helder Câmara. O enterro tornou-se um dos mais emocionantes atos públicos contra a ditadura, acompanhado por 20 mil pessoas no percurso de dez quilômetros do bairro do Espinheiro ao cemitério da Várzea, com várias paradas por conta de ações da polícia e prisões de manifestantes.Outra história que me marcou profundamente foi o atentado a bala contra um estudante de Engenharia, Cândido Pinto, que o deixou paraplégico e levou-o à morte em consequência de repetidas infecções, anos depois. A luta desse jovem revolucionário me impressionou por seus lances trágicos e sempre desejei narrá-la. Porém não sou um historiador nem possuo o menor talento para a biografia. Trabalho com memória inventada e mesmo essa necessita de uma centelha que a desencadeie. O encontro com Cândido Pinto só aconteceria em 1981, quando me mudei com a esposa e um filho para o bairro da Iputinga. Meu vizinho, o engenheiro Claudio Pinto, era irmão de Cândido. Sobre um móvel da sala de sua casa, avistei um retrato de família: pai, mãe, irmãos e irmãs do rapazinho magro, de sorriso alegre, recostado bem à vontade num muro de jardim. Guardei essa imagem durante anos. Um velho processo de aprendizagem da escrita, que consistia em descrever quadros reproduzidos nas páginas dos livros, nunca perdeu seu fascínio sobre mim. Eu já tinha o começo do romance: uma foto de família e um enredo para o personagem Geraldo.Em Estive Lá Fora, como em Galileia, trato de famílias. Embora quase toda ação transcorra no Recife, a trama também remete ao Sertão dos Inhamuns, um dos cenários que mais visito. Dessa maneira, mantenho os vínculos com a paisagem de meus livros anteriores. O sertão alimenta o imaginário do personagem Cirilo, irmão de Geraldo; os antigos crimes da família o atormentam e o fascinam para a morte.Não escrevi um romance sobre a ditadura militar - embora ela apareça em imagens de fundo -, mas sobre uma família que padece de insegurança e medo pelo destino de um de seus membros, Geraldo, que ingressou num partido político de esquerda e prega a luta armada. Cirilo, o irmão mais novo, veio morar no Recife para estudar Medicina e, a pedido da mãe, vigiar o irmão. Atormentado e contraditório, Cirilo é incontido no seu amor romântico pela verdade e a ética. Existem muitas vozes narrativas no romance. Há trechos em que a mãe Célia Regina assume esse papel através de cartas enviadas a Cirilo. Noutros, o pai Luis Eugênio se torna narrador por meio de anotações feitas num livro de capa preta, onde registra e analisa os descaminhos de Geraldo.Tentei recriar a atmosfera de horror do fim da década de 1960, quando as medidas provisórias e os atos institucionais haviam limitado direitos civis e liberdade de expressão. Fora das polaridades direita e esquerda, comunismo e capitalismo, o Recife também pulsava, como o restante do mundo, nos ecos da contracultura e do movimento hippie. Mantive diálogo com amigos que estiveram engajados na resistência à ditadura, alguns presos e um deles condenado à prisão perpétua. Essa conversa ao vivo ou por meio de e-mail com Abel Menezes, Alberto Vinicius, Alexandre Costa Lima, Everardo Norões, Homero Fonseca, José Arlindo Soares e Nancy Lourenço, sobre dez temas que nos eram caros e que estavam na pauta daqueles dias escuros, foram fundamentais para a construção do livro. Pensava em aproveitá-la como um capítulo especial, até imaginei o título de Conversa no Bar Savoy, mas as dificuldades editoriais para realizar isso me fizeram desistir da ideia.Em Estive Lá Fora me refiro a autores que viveram o período entre as duas Guerras, principalmente os judeus massacrados pelo comunismo e o nazismo. Quando apenas sonhava em escrever o romance, ganhei de presente de minha mulher ensaios de Hannah Arendt reunidos com o título de Homens em Tempos Sombrios. Percebi através dessa e de outras leituras, que se estenderam por Hermann Broch, Walter Benjamin, Bruno Schultz, Isaac Babel, Thomas Mann e Kafka, entre vários autores, que os mecanismos do terror eram os mesmos, em qualquer época ou ideologia. Essa percepção é na verdade do personagem Cirilo, ele que tateia um caminho próprio, perambulando pelas ruas do Recife, humilhado e infeliz.Diferentemente da escrita do conto, concisa e econômica, no romance tudo cabe. Por isso levei a sério a sugestão de Walter Benjamin de que escrever consiste largamente em citações - a mais louca técnica mosaica imaginável. Só que resolvi não pôr aspas nem itálicos. Citar é quase o mesmo que assistir a um ator representando com a técnica do equilíbrio instável: a plateia se mantém desperta, temendo que o ator possa cair a qualquer momento. As citações colocadas em pontos estratégicos da narrativa provocam o leitor a pensar, a manter-se acordado para o que lê. Quando eu me angustiava com o recurso das citações, também valorizado por Jorge Luis Borges, o amigo Abel Menezes lembrou-me o que Emerson escreveu sobre Shakespeare, em Homens Representativos: veio praticamente a ser uma espécie de regra da literatura que um homem, tendo uma vez se mostrado capaz de uma escritura original, está autorizado, a partir daí, a roubar dos escritos de outros com discrição. O pensamento é propriedade daquele que pode levá-lo em consideração e daquele que, de modo adequado, pode dar-lhe um lugar. Um certo desajeito marca o uso dos pensamentos emprestados, mas, tão logo saibamos o que fazer com eles, se tornam nossos. Desse modo, toda originalidade é relativa. Todo pensador é retrospectivo.Talvez por conta de minha origem rural, da profissão de médico e da prática de encenador, habituei-me ao trabalho coletivo. As corporações de ofício sempre me encantaram. A assinatura é invenção da modernidade, coisa inimaginável para Giotto, quando criava seus afrescos com grupos de artesãos. Dou para ler o que escrevo aos amigos e parceiros, antes de publicar. Marcelo Ferroni fez várias leituras de Estive Lá Fora, desde que enviei os originais à editora, e já os primeiros esboços foram lidos por Thiago Corrêa, Alexandre Lima, Artur Ataide e Conrado Falbo. O arquiteto José Luiz Menezes me ajudou a recompor mapas e edifícios do Recife. De certo modo, faço parte de uma corporação literária.Descobrir a fala adequada para personagens que transitam em mundos diferentes revelou-se a maior dificuldade desse romance. Não era possível que catadores de caranguejo, sindicalistas e professores falassem o mesmo léxico. Não aprecio as falas naturais, prefiro sempre os diálogos que causam estranhamento. Na última revisão ainda estava cheio de dúvida se manteria os arroubos gongóricos do personagem Carmo de Goiana, inspirado em Luiz Gomes Corrêa - Luiz de Goyanna - personagem real a quem os militares espancaram e arrastaram pela barba, castigando-o porque tocara finados pelo golpe militar.Dediquei Estive Lá Fora a Ritinha Brito e João Leandro, meus pais. No longo e cansativo processo de escrita desse romance, eles estiveram amorosamente ao meu lado, na lembrança, é bem verdade. Os dois serviram de modelo à construção dos personagens Luis Eugênio e Célia Regina. Desde menino, me impressionava o esforço de meus pais para que os filhos tivessem acesso aos bens de cultura, mas nunca percebi neles a cupidez por bens materiais. Trazer o conhecimento para dentro da nossa casa tornou-se uma missão de vida, que se impuseram sem reclamar. Minha mãe era professora primária, abandonando logo cedo essa profissão para cuidar da família. Já adulto, meu pai estudou sozinho, encantado com a ciência, o progresso e o trabalho; mais tarde se tornaria comerciante.Minha mãe não saberá que dediquei este romance a ela. Há dois anos e meio vive numa unidade semi-intensiva, em casa. Nos últimos meses não tenho certeza se compreende o que falo, quando vou visitá-la no Ceará. É difícil conviver nesse território de vida e morte, mesmo para mim, um médico de longa experiência. Foi para ela que li o primeiro texto de criança e percebi o efeito que as palavras causavam nas pessoas. Papai corrigia meus deveres até a exaustão, não deixando passar um erro. Queria sempre o mais perfeito. Vai ver que desse aprendizado a escrita tornou-se um exercício tão custoso. Mesmo renegando-a, é por meio dela que encaro os meus fantasmas, os mortos que me assombram desde bem antes de eu nascer. "Não sou historiador. Trabalho com memória inventada e mesmo essa necessita duma centelha que a desencadeie"

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