28 de abril de 2012 | 03h09
Em Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo Tio, coletânea de discursos proferidos por ocasião da outorga de prêmios literários (dentre eles, o Nobel, em 2009); artigos de jornais e trabalhos apresentados em seminários, Herta Müller retorna, como sempre, ao torturado e vasto campo das memórias pessoais, literárias e políticas da terra natal. Essa terra natal, o Banato romeno, onde a autora nasceu como membro de uma minoria alemã, é uma metáfora dos exílios, dos nacionalismos e das catástrofes da história europeia do século 20. A história dessa minoria alemã começa no fim do século 18, quando o imperador José II da Áustria resolve deslocar um vasto contingente de alemães da Suábia para essa província recém-conquistada, com o objetivo de nela introduzir uma nova ética de trabalho e de progresso, pois essa região, como o Leste da Europa, era vista pelos déspotas esclarecidos e pelos seguidores dos ideais humanistas como bárbara e inculta. Um projeto, portanto, de caráter colonialista, "civilizatório".
Os suábios, aos quais se juntaram outros grupos alemães, permaneceram, por três séculos, como um grupo étnico relativamente isolado, fiéis à língua alemã e à sua cultura. Mas passaram a ser perseguidos pelo nacionalismo romeno quando o Império Austro-Húngaro foi desmembrado, em 1918. A chegada das tropas alemãs, na década de 1940, foi vista por muitos deles como a oportunidade para a vingança. Assim, suábios do Banato - dentre eles o pai e o tio de Herta Müller - engrossaram, em massa, as fileiras da Wehrmacht e da SS e, após o fim do conflito mundial, rememoravam, com canções de guerra, esses tempos vistos como gloriosos, pois voltaram a ser marginalizados pelo stalinismo e pela ditadura de Ceausescu depois de 1945. Ou foram cooptados por esses regimes opressivos, atuando como informantes sobre as atividades e ideias políticas infiltrados entre membros de sua minoria, e como delatores.
É sobre o solo contaminado das relações humanas aberrantes estabelecidos sob o terror de Estado que se formam as memórias afetivas de Herta Müller - presentes em obras como Tudo o Que Tenho Levo Comigo; Depressões e O Compromisso, lançadas anteriormente pela Globo. Essa mesma substância é o fio condutor dos textos incluídos nesta antologia. São memórias que falam da vida e da morte sob o totalitarismo; da paranoia do indivíduo numa sociedade em que a vida de cada um é espionada pelo sistema; de familiares, amigos e literatos que foram mortos ou deportados pelo regime comunista para campos de trabalhos forçados.
Nesse contexto, a palavra conquista um novo estatuto, enquanto refúgio possível para o exercício da liberdade e enquanto espaço de ressignificação e de transformação da experiência. Herta Müller ganhava a vida numa fábrica de tratores, como tradutora de manuais de máquinas importadas, e desse período de sua vida ela recupera termos que em Toda Palavra Conhece Algo do Círculo Vicioso se transformam em conceitos-chave da vida sob a ditadura e adquirem significados inesperados.
Um verdadeiro compêndio, um léxico e uma gramática do terror vão se estabelecendo por meio das associações de imagens e de ideias que conduzem os textos, constroem pontes entre eles e estabelecem nexos surpreendentes. A experiência traumática da autora a leva a encarar seu ofício como o de alguém que "inventa, por meio da língua, uma verdade que mostra o que acontece ao nosso redor quando os valores descarrilam" - por exemplo, quando ela tenta consultar seus arquivos na Securitate, a temida polícia política de Ceausescu.
Mesmo depois de sua mudança para Berlim Ocidental, em 1987, numa época em que o "resgate" dos membros da minoria germânica pelo governo alemão ocidental se tornara uma importante fonte de divisas para o governo de Ceausescu, o confronto com as autoridades não cessou: de um lado ela enfrentou a desconfiança dos órgãos de imigração, que nela viam uma potencial espiã; de outro, as ameaças dos membros de seu grupo étnico já estabelecidos na Alemanha, que a viam como alguém que cospe no prato em que comeu.
A prática da literatura torna-se um antídoto contra esses venenos enquanto a leitura de autores como Paul Celan, Elias Canetti, Oskar Pastior, Joseph Brodsky, Aharon Appelfeld e Viktor Klemperer constitui um lar imaginário, que ela carrega consigo como uma colcha de retalhos mal costurados de liberdade. Pois a liberdade é a tarefa autoimposta de Herta Müller.
SEMPRE A MESMA NEVE
E SEMPRE O MESMO TIO
Autora: Herta Müller
Tradução: Claudia Abeling
Editora: Globo
(244 págs., R$ 34,90)
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