Páginas da memória e do inconsciente

Reedição de 'O Tempo Redescoberto', que encerra o clássico ciclo de romances do francês Marcel Proust, convida à reflexão sobre o original olhar do autor a respeito do homem e da literatura

PUBLICIDADE

Por Eliana Cardoso
Atualização:

Samuel Beckett escreveu em 1930 um dos ensaios mais importantes para a discussão da obra de Proust.1 Explicou que a mente escapa da tríade que a escraviza - o tempo, o hábito e a memória consciente - através do fenômeno que o autor de Em Busca do Tempo Perdido chamou de memória involuntária. Esse mecanismo, fortuito e associado aos sentidos, repete no momento presente uma sensação experimentada no passado. Rompe a barreira do hábito. E a impressão perdida e reencontrada libera o homem da ordem do tempo. Mas antes de chegarmos lá, precisamos de uma introdução e começamos com um sumário dos eventos centrais dos seis volumes que precedem O Tempo Redescoberto.A Recherche, cujo início da publicação completa um século este ano, explora a consciência de um escritor, isolado em seu quarto, retratando a sociedade dos aristocratas da belle époque na voz de Marcel, o narrador em primeira pessoa. Ele se lembra das férias na casa da tia-avó e reflete sobre recordações que tinham ficado incompletas até o dia em que o gosto de uma madalena molhada no chá lhe trouxe de volta o mundo em Combray e seus habitantes. E, entre eles, Charles Swann, que, apaixonado por uma cocotte, Odette de Crécy, padece de ciúmes.Um volume adiante, Marcel compara o quarto do grande hotel de Balbec (onde, rapazinho, passa férias com a avó) e o quarto de Combray na infância. Lembra que, quando jovem, sonhava com os nomes de vários lugares, mas se vira forçado a cancelar planos de viagem por conselho médico, ficando em Paris, onde conhece Gilberte, filha de Odette, que afinal se casara com Charles Swann. Marcel frequenta a casa de Gilberte, apaixona-se por ela e depois perde o interesse.Em Balbec, a avó o apresenta a Madame de Villeparisis, que o convida para passeios de carro. Trava então conhecimento com Robert de Saint-Loup e o Barão de Charlus, cujo olhar intenso o impressiona. Aproxima-se de Albertine Simonet. Com a chegada do mau tempo, o hotel se esvazia e Marcel volta a Paris. Muda-se com os pais para um apartamento anexo ao palácio de Guermantes. A cozinheira e criada, Françoise, lamenta a mudança. Marcel considera como gostaria de entrar para o mundo dos aristocratas e na tentativa de se aproximar de Madame de Guermantes, a quem adora, vai visitar o sobrinho dela, Robert de Saint-Loup, estacionado no alojamento militar de Doncières. Saint-Loup sofre por causa da amante e Marcel a reconhece como uma prostituta que vira num bordel.Marcel frequenta o salão de Madame de Villeparisis, onde observa a alta sociedade. Na rua, presencia a relação entre o Senhor de Charlus e o alfaiate Jupien, de quem Charlus, dotado de traços artísticos, devoção cristã e preferência homossexual, é amante e protetor. No último volume, Charlus se fará acorrentar à cama de um prostíbulo, para melhor gozar uma sessão de chicotadas, em que revive torturas religiosas e, na sua exaltação, se identifica ao arcanjo Rafael.Depois da morte da avó, Marcel faz uma segunda visita a Balbec. Ao descalçar as botas, entende a extensão de sua perda. Seu coração, instável, às vezes sente amor por Albertine (que acredita lésbica) e outras vezes, não. Marcel quer romper com Albertine, mas de repente decide, ao contrário, que deve se casar com ela. De volta a Paris, vive com Albertine na casa dos pais ausentes, tornando-a quase prisioneira e pedindo a Andrée, amiga em comum, que a siga. Seus ciúmes e desconfiança se comparam aos que Swann sentia em relação a Odette. Marcel percebe que, apesar de tudo, Albertine permanece um mistério.Albertine foge. A fuga inverte os sentimentos de Marcel que começava a sentir indiferença por ela. Faz de tudo para encontrar a amante que morre vítima de uma queda de cavalo. Marcel viaja a Veneza com a mãe e pouco tempo depois vai para Tansonville, perto de Combray. Encontra-se com Gilberte, seu amor da infância. Ela se casara com Robert de Saint-Loup e lamenta as traições do marido sem saber que os amantes dele são homens. Saint-Loup tem uma relação com Charles Morel, filho de um lacaio e violinista ambicioso. Morel é também a obsessão amorosa do Barão de Charlus.No desenvolvimento dos sentimentos de Marcel por Albertine, de Swann por Odette ou de Charlus por Morel, fica claro que Proust não acredita em "afinidades eletivas". Jacques Rivière2 argumenta que, como Freud, ignorado por Proust, Marcel descreve o amor como um atributo do sujeito (a libido separada de um objeto preciso). Marcel acredita que o amor é pura ansiedade e que, tornando-se intolerável, transforma-se em amor por alguém que o acaso coloca ao alcance do sujeito. Proust também explora a ambivalência de Marcel em relação a Albertine, descrevendo os momentos em que "detestamos alguém que amamos", de forma paralela à observação de Freud de que o sentimento oposto é o mais próximo de outro sentimento com que troca de lugar facilmente. E, ainda, de forma paralela a Freud, Proust explora a relação entre o amor e o sofrimento, enfatizando a conexão entre o instinto sexual e a crueldade, seja contra si mesmo, seja contra outros.Proust revolucionou nossa percepção e análise dos sentimentos. Latente ao longo de toda a Recherche está a percepção de que as emoções mentem para seus próprios donos. Cabe ao escritor resistir às máscaras usadas (para enganá-lo) por seus pensamentos e sentires. Proust, de forma paralela a Freud (que aparentemente desconhecia), inaugurou o questionamento da consciência, quebrando a informação que ela oferece. Proust espiona os efeitos dos sentimentos, em vez de analisá-los diretamente, pois o entendimento deles depende dos sinais (sintomas?) que emitem e não da análise direta deles mesmos.Proust descreve, passo a passo - nas páginas 207 a 244 do Tempo Redescoberto (tradução de Lúcia Miguel Pereira, Editora Globo) -, o fenômeno que batizou de memória involuntária. Depois de tropeçar na calçada irregular do pátio dos Guermantes, Marcel experimenta a mesma sensação de felicidade descrita no primeiro volume, quando provara o mais famoso bolinho da literatura. Agora, Marcel escreve: "Desta vez eu estava bem resolvido a não mais me resignar, como no dia que saboreara a Madeleine molhada no chá, a ignorar por que, sem haver eu feito nenhum novo raciocínio nem achado nenhum argumento decisivo, perderam toda a importância as dificuldades, insolúveis minutos antes. A felicidade que acabava de experimentar era, efetivamente, a mesma que sentira ao comer a Madeleine, e de cujas causas profundas adiara até então a busca".Desse tropeço na calçada surgiu-lhe Veneza, tal como do gosto da madalena no chá lhe surgira Combray. Marcel descreve ainda outras ocasiões em que a mesma sensação de felicidade (diante de recordações involuntárias) se repete, como, por exemplo, ao ouvir o ruído de uma colher esbarrando no prato ou sentir o toque do guardanapo nos lábios. Entendendo finalmente por que essas imagens lhe provocaram tamanha alegria - suficiente para torná-lo "indiferente à ideia da morte" -, conclui que a recordação nos faz respirar de repente um ar novo, precisamente por ser um ar outrora respirado, "pois os verdadeiros paraísos são os paraísos perdidos".As verdades apreendidas pela inteligência são mais superficiais do que aquelas que a vida nos comunica à nossa revelia, numa impressão física, e nos penetra através dos sentidos. A mais trivial experiência contém elementos sensoriais que não têm relação lógica com ela e são, portanto, rejeitados pela memória inteligente. O esquecimento garante a pureza desses elementos que, reencontrados ao acaso, traz de volta o som já ouvido ou o perfume já aspirado, que se repete no presente como foi no passado, liberando a essência permanente das coisas. Nosso verdadeiro eu, que parecia morto, desperta e recria em nós o homem livre da ordem do tempo.Mais um passo para completar o argumento. Essa sensação propiciada pela memória involuntária é "para o escritor o mesmo que a experimentação para o sábio". O artista tira da obscuridade reinante em seu íntimo o que os outros não conhecem. E, assim, Marcel se descobre como artista: "Compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, minha vida passada; que tudo me viera nos divertimentos frívolos, na indolência, na ternura, na dor". Marcel observa que, como a semente que guarda alimentos para nutrir a planta, sem entender-lhes o destino, nem nada fazer para preservá-los, ele acumulara essas experiências que agora definiam sua vocação de escritor. Quase o mesmo diria García Márquez a respeito de sua própria vida: Vivir para contarla3.Ao contrário da tradição realista - em que o narrador reforça a percepção convencional, persuadindo o leitor de que ele está lendo a realidade -, Proust faz com que o leitor, através de sua desorientação, veja objetos e eventos de uma forma nova. Otto Maria Carpeaux atribui a revolução proustiana à composição e ao estilo4. Ao estilo, pelo abandono da ordem cronológica, com a substituição do tempo dos relógios pelo tempo da memória bergsoniana. Ao estilo, pelas frases complicadas e sinuosas, que acentuam a confusão intencional, confusão que replica a dos sonhos.Carpeaux compara ainda as observações psicológicas agudas de Proust às de Katherine Mansfield e coloca sua obra dentro de uma literatura que chama de feminina. Talvez seja essa perspectiva feminina que tenha escapado a Freud, quando fez uma confidência a Marie Bonaparte, mostrando sua decepção com a leitura de Proust: "Não acho que a obra de Proust vá durar. E o estilo! Ele sempre quer ir às profundezas e nunca termina suas frases". 5Parece que, pelo menos daquela vez, Freud errou. Não faça o mesmo. Leia Proust devagar. Depois veja o filme de Raoul Ruiz (Le Temps Retrouvé, 1999) e você vai se divertir com a personificação que John Malkovich empresta ao Barão de Charlus.NOTAS: 1 Samuel Beckett, Proust and three Dialogues with Georges Duthuit (John Calder Publisher, 1999); 2 Jacques Rivière, The Ideal Reader: Proust, Freud, and the Reconstruction of European Culture (Transaction Publishers, 2009); 3 Gabriel García Márquez, Viver para Contar (Record, 2003, tradução de Eric Nepomuceno); 4 Otto Maria Carpeaux, Volume 7: Fin Du Siècle, e Volume 8: Modernismo (LeYa, 2012); 5 Elisabeth Roudinesco, http://www.cifpr.fr/+Freud-et-Proust-parallele.ELIANA CARDOSO, PHD EM ECONOMIA PELO MIT, É PROFESSORA TITULAR DA FGVTrecho:"Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as porventura existentes na lua. Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mundos quantos artistas originais existem, mais diversos entre si do que os que rolam no infinito, e que, muitos séculos após a extinção do núcleo de onde emanam, ainda nos enviam seus raios".

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.