Páginas da investida japonesa

Com profissionalização dos serviços de tradução no Brasil, autores contemporâneos e clássicos da literatura do Japão começam a figurar nas estantes das livrarias

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho e de O Estado de S.Paulo
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Há 30 anos pouco se falava de literatura japonesa no Brasil. Esporadicamente, uma ou outra editora lançava no mercado livros de autores mais festejados como Yukio Mishima (1925-1970), mesmo assim traduzidos do francês ou inglês. Com a profissionalização dos serviços de tradução no País, autores contemporâneos e clássicos da literatura japonesa passaram a figurar nas estantes das livrarias em tradução direta do japonês, uma das mais difíceis línguas para os ocidentais - complexidade que justifica, em parte, a demora no lançamento de títulos fundamentais. Mesmo assim, autores premiados e vivos, como Kenzaburo Oe (Nobel de Literatura de 1994), ou mortos, como Junichiro Tanizaki (1886-1965) já têm títulos disponíveis em boas traduções, alguns até comprados pelo governo. Não só as compras governamentais de literatura nipônica- que ainda são pequenas - têm incentivado os editores. Angel Bojadsen, diretor editorial da Estação Liberdade, que concentra o maior número de títulos japoneses publicados, revela um dado curioso sobre novos leitores dos escritores orientais: alguns deles são alunos de academias de artes marciais que adotaram de imediato o best-seller Musashi (100 mil exemplares vendidos só no Brasil), versão romanceada da vida do mais famoso samurai japonês, Miyamoto Musashi (1584-1645), feita pelo escritor Eijo Yoshikawa (1892-1962). Musashi foi justamente o título escolhido pela veterana Leiko Gotoda, sobrinha do escritor Junichiro Tanizaki, para iniciar sua carreira de tradutora há 20 anos. Sobre sua experiência ela fala hoje, das 15 h às 17h30, no seminário Lendo o Japão: A Difusão da Literatura Japonesa no Brasil, no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, que promove o evento com a Fundação Japão. Do encontro participam ainda a pesquisadora Luiza Nana Yoshida e o editor Marcos Strecker, da Globo, além da tradutora e professora universitária Neide Hissae Nagae, da USP, que mediará os debates. Além do seminário, um simpósio internacional reunirá, entre terça e quinta-feira, no Memorial da América Latina, pesquisadores de países latino-americanos e do Japão para discutir justamente a tradução e o ensino do japonês. Esses dois encontros dão a medida do interesse que a literatura japonesa tem despertado no País. Um autor como Haruki Murakami, publicado pela Alfaguara e Estação Liberdade, é hoje tão popular no Brasil como o chileno Roberto Bolaño, com quem guarda pelo menos uma semelhança: o gosto por livros volumosos. O mais recente, 1Q84, distopia pós-orwelliana sobre uma mulher que vive num mundo paralelo, adianta o editor Marcelo Ferroni, está sendo traduzido pela Alfaguara, tem 1.200 páginas e será lançado em três volumes em 2012. "A cada livro, Murakami vende mais", garante Ferroni. Nenhuma aposta como essa, ou do igualmente volumoso 14 Contos (mais de 600 páginas), de Kenzaburo Oe, que a Companhia das Letras lança em novembro, seria possível três décadas atrás, até mesmo porque era difícil encontrar um tradutor de japonês. Leiko Gotoda foi pioneira na área. "Nos anos 1980 nem se falava em literatura japonesa aqui e, como meu marido é japonês, pensei que seria bom traduzir um livro para explicar aos nossos filhos as razões de a educação japonesa ser tão rígida", conta. A escolha recaiu sobre Musashi, a saga do samurai que inventou a luta com duas espadas, viveu numa era de transição (a Tokugawa), tentou compensar seu lado bélico com o exercício da arte da pintura e da caligrafia e terminou seus dias como eremita. Musashi nasceu como folhetim. Tem forte apelo popular. Não é o caso de muitos outros livros lançados pela editora Estação Liberdade, cujo catálogo abriga 350 títulos ativos, dos quais 45 são japoneses - número expressivo, considerando que o mercado brasileiro tem, hoje, algo em torno de 160 obras de literatos japoneses. Dessas, o editor Angel Bojadsen publicou títulos fundamentais do Nobel (de 1968) Yasunari Kawabata (1899-1972) como O País das Neves (1937), em tudo diferente de Musashi. Já nesse livro de estreia, a narrativa de Kawabata revela um autor pouco preocupado em seduzir o leitor. Tanizaki é outro escritor complexo, mas que não dá tanto trabalho aos tradutores como o incontornável Kenzaburo Oe. "Diferentemente dos tradutores do francês e inglês, os de japonês têm de dominar a cultura do Japão, conhecer o país, para dialogar com a cultura local", comenta Bojadsen. Um dos tradutores de Tanizaki, Jefferson José Teixeira, que assinou a versão de A Chave (Companhia das Letras) confirma a dificuldade imposta pela sintaxe de Kenzaburo Oe, de quem traduz agora O Substituto (Torikae ko /Chenjiringu, 2000) para a Editora Record. "É como ler Guimarães Rosa", compara o tradutor, que há oito meses trabalha no projeto. "A estrutura das frases é inusual, parece que sempre falta um pedaço, e ele recorre muito a analogias bíblicas, exigindo do tradutor amplo repertório", observa Teixeira, que também traduziu o recém-lançado Chuva Negra (Estação Liberdade), de Masuji Ibuse (1898-1993). Baseado em testemunhos dos sobreviventes da bomba atômica de Hiroshima, Ibuse escreveu um romance sobre a saga do casal Shizuma para casar a sobrinha Yasuko, prejudicada pelo boato de que teria sido afetada pela radioatividade. Ibuse, que teve o livro filmado em 1989 por Shohei Imamura, era um autor francamente marcado pela tradição literária francesa, quase tanto como Natsume Soseki (1867-1916) pela literatura inglesa. De Soseki, a mesma Estação Liberdade está lançando um segundo livro, E Depois (1909), após o êxito de Eu Sou Um Gato (1905), livro de estreia do autor, publicado aqui apenas em 2008 com tradução de Jefferson José Teixeira. Também tradutora de Soseki, Lica Hashimoto, da terceira geração de imigrantes japoneses, conta que E Depois foi "um dos livros mais difíceis" que traduziu, não só pelo vocabulário de Soseki como pelas "inúmeras referências a autores russos, entre eles Andreiev e Tolstoi, que adorava". Considerando o protagonista de E Depois, o dândi Daisuke Nagai, solteirão hedonista de 30 anos que vive à custa do pai, é quase certo que Soseki também gostasse de Goncharov, particularmente do seu Oblomov (1859), personificação do preguiçoso que passa a vida num divã, evitando envolvimento com problemas mundanos. Sendo um autor que até tentou se integrar à cultura ocidental, vivendo como bolsista na Inglaterra, seria lícito esperar de Soseki certas facilidades que oferece o contemporâneo Murakami, assumidamente marcado pela literatura e costumes americanos (músico, ele adora jazz e traduziu para o japonês obras de F. Scott Fitzgerald e Truman Capote). Soseki, vivendo no alvorecer do século passado - ainda resistente à influência do Ocidente -, não se adaptou, reafirmando seu tônus oriental e recusando o naturalismo dominante na era Meji. "Ele tinha uma coluna no diário Asahi Shimbun em que questionava se essa influência ocidental seria boa para os japoneses", diz a tradutora Lica Hashimoto. Soseki, aliás, não foi o único. Mishima cometeu seppuku (suicídio ritual) para defender o imperador e os valores tradicionais do Japão, após um namoro prolongado com a cultura ocidental. Alguns de seus livros, como Neve de Primavera e Mar da Fertilidade, foram publicados pela Brasiliense nos anos 1980. Entre as traduções feitas neste século destaca-se a de Cores Proibidas, por Jefferson José Teixeira, ousado painel do submundo homossexual de Tóquio nos anos 1950. Os contemporâneos japoneses oferecem menos dificuldades, dizem os tradutores. Já os clássicos exigem até mutirão. Foi o caso de As Irmãs Makioka, obra-prima de Tanizaki que teve Neide Hissae Nagae entre seus vários tradutores. Para verter a narrativa sobre a alta classe média de Kyoto e Osaka nos anos 1930, ela trabalhou ao lado de, entre outros colegas, Leiko Gotoda, a padroeira das duas últimas gerações de tradutores japoneses. "Optamos por não uniformizar a linguagem, mas acho que o livro mereceria uma nova tradução", diz Neide. De fato, por trás de uma história de casamento - da terceira filha de um casal abastado - há um subtexto sobre preconceito e tradição que exige dos tradutores um périplo para tornar compreensíveis os costumes japoneses. Não sem razão, quase todas as traduções chegam com centenas de notas de pé de página - inclusive no recente E Depois, que tem 89 delas, após um corte de outras 60, para não cansar o leitor. Isso desanima as editoras? Tiago Nogueira, editor da Companhia das Letras, diz que não. "O público para a literatura japonesa ainda é restrito, mas cativo", diz, revelando que tanto Tanizaki, como Kenzaburo Oe - do qual a editora relançou Jovens de um Novo Tempo, Despertai! - vendem devagar, mas sempre. Marcos Strecker, da Globo - editora que publicou Beleza e Tristeza, de Kawabata -, afirma, inclusive, que o panorama nunca esteve tão favorável para os escritores japoneses, destacando o sucesso de Banana Yoshimoto (autora de Kitchen), ex-garçonete de um clube de golfe, discípula do pop Murakami e louca pelo norte-americano Stephen King.

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