Página recria poemas famosos em versão funkeira

Publicitário Murilo Lense cria o perfil “Se Poema Fosse Funk”, com paródias de grandes poetas

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Foto do author Gilberto Amendola
Por Gilberto Amendola
Atualização:

Como seria se os grandes poetas fossem funqueiros? E se Fernando Pessoa tivesse um heterônimo MC, o MC Nando? Talvez, quem sabe, adaptasse versos como “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor / Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu” por algo com uma pegada mais sensual. Que tal “Quem quer brincar no cobertor / Tem que chegar, mas sem caó / Deus ao baile o perigo e a brisa deu / Mas nele é que inventou o créu”?

Essa é a proposta do perfil que está hospedado no Instagram Se.Poema.Fosse.Funk, criado pelo publicitário Murilo Lense, de 30 anos. O perfil, que surgiu em Curitiba durante a pandemia da covid-19, vem sendo alimentado diretamente de Lisboa (cidade de tantos poetas), onde Lense vive e trabalha. 

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“Mandei um poema da fase erótica do Drummond (Carlos Drummond de Andrade) para uma amiga. Começamos a imaginar como seriam alguns poemas traduzidos para a linguagem de hoje, para o funk”, contou Lense. Foi a amiga quem sugeriu a criação do perfil – que logo ganharia também uma imagem de um Fernando Pessoa “chavoso” (criação de Rodrigo Fabocci). 

“No Instagram, coloco o poema original ao lado da minha adaptação. Tento respeitar a métrica, a rima e o tema”, disse Lense. “Acho que é um jeito de quebrar preconceitos. Para quem é da poesia, acho que é um jeito de perceber que a linguagem do funk também é rica. Para aqueles que são do funk, eu acho que serve para perceberem que poesia não é chata. Minha ideia é quebrar essa barreira entre o popular e o erudito”, completou. 

Depois do MC Nando Pessoa, vieram outros MC’s de peso, como MC Camões, MC Neruda, MC Leminski e muitos outros. Nem todas as adaptações são publicáveis, mas existem pérolas. Se Drummond escreveu “E agora, José/A festa acabou/A luz apagou/O povo sumiu”, seu lado funqueiro mandou um “E agora, coé / O SUS acabô / A Anvisa zuô / As vacina sumiu...” 

Murilo Lense, criador do perfil "Se Poema Fosse Funk" Foto: Giovanna Travensolo

O poeta Mário Quintana, quem diria, também tem seu lado MC. É difícil encontrar quem não conheça os seguintes versos: “Todos esses que aí estão/Atravancando o meu caminho/Eles passarão.../Eu passarinho”. Já a versão MC do Quintana ataca de “Todos esses que aí tão / Atrasando meu caminho / Eles dançarão... / O meu passinho!” 

Antes mesmo do Se.Poema.Fosse.Funk, o Instagram já tinha um perfil dedicado a misturar o universo da literatura com o do funk. No Funkeiros Cults, a ideia é compartilhar imagens de fãs do gênero comentando obras famosas – com a linguagem do funk. Por exemplo, para o livro Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), o comentário destacado na imagem mostra como a linguagem do funk é rica e criativa. “Carai parsa os mlk (moleques) nascendo em máquina azideia”. 

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Em outro post, um livro de Freud nas mãos e o seguinte comentário: “Oxê, então quer dizer que eu só escolho as bandidas que é parecida (sic) com a minha coroa”. O perfil é tão cult que o criador não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem.

Preconceito

Os perfis que tratam de forma bem humorada do universo do funk também acabam levantando o debate sobre o conteúdo das letras do gênero. O funk é machista? Violento? Ou seriam os fãs e artistas do gênero vítimas de preconceito?

Rúbia Mara, assessora e empresária de MCs com um trabalho focado em artistas da periferia de São Paulo, observa que “o funk é o espelho direto da sociedade”. “Quando a economia estava em alta, com muito crédito no mercado, tínhamos o funk ostentação. Agora, na crise, temos uma explosão desse funk mais sexualizado, o funk ousadia”, disse Mara. 

Rúbia Mara. Para assessora e empresária de MCs, com trabalho focado nos artistas das periferias, “o funk é o espelho direto de nossa sociedade” Foto: Rúbia Mara

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“Existem letras machistas. Sim, existem. Mas não foi o funk que inventou o machismo. A maioria dos MCs são muito jovens e acabam reproduzindo essas coisas. Mas existe uma dinâmica e uma evolução constante no gênero”, completou.

Para o MC e produtor Bio G3, um dos precursores do gênero ostentação, “um movimento que nasce nas periferias já nasce marginalizado pela sociedade. Isso já aconteceu com o samba e com o rap”. E completa: “o interessante é que, como não se trata de um gênero ideologizado, como o rap, os funqueiros têm total liberdade para falarem do que quiserem”.

Segundo G3, o que inspira a criação dos funqueiros é a realidade que os cerca. “Os criadores são da periferia, do morro e da favela. A inspiração é, sim, a sexualidade precoce, a realidade de crime e drogas, mas também no funk se fala de amor, de relacionamentos...” Para o produtor e MC, a próxima tendência do movimento é o “funk consciente”. “Já é algo que está em alta, está em movimento. O funk consciente é o próximo passo do gênero”, diz.

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“Grandes artistas do mundo inteiro estão gravando funk. As maiores marcas do mundo estão usando funk em suas propagandas. Por meio do nosso trabalho, dos méritos do nosso trabalho, acredito na mudança do olhar na sociedade em relação ao gênero”, finalizou G3. 

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