Outros mundos

Compositores fazem bienal e sugerem caminhos da nova geração

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Por João Luiz Sampaio/ Curitiba
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Os músicos e a plateia levantam-se e aos poucos deixam o Teatro da Reitoria, no centro de Curitiba. É noite fria de sábado e o concerto é levado para o lado de fora. Os artistas instalam-se nas calçadas da rua Quinze de Novembro, divididos em três grupos. A princípio discreto, o som dos metais começa a ser ouvido; em seguida, os instrumentos de cordas; e, por fim, as madeiras. O barulho dos carros dificulta a audição - mas isso é parte da proposta da peça. O mote da obra do compositor Peter Ablinger, Rua Quinze de Novembro, é a capacidade de ouvir - e aos músicos cabe a tarefa de dialogar com os barulhos da cidade, tocando mais forte ou mais fraco de acordo com a necessidade. Estamos, enfim, falando de percepção. E é ela o tema central da II Bienal Música Hoje, de Curitiba, encerrada na semana passada. Percepção não apenas musical, mas de que é preciso buscar espaços para a música criada por uma nova geração de autores que já nasceu sob os paradigmas de nossa época.No Rio, há um grupo chamado Prelúdio 21; em São Paulo, surgiu o projeto Música Plural. Já em Curitiba, essa nova geração responde pelo nome de entreCompositores, coletivo do qual fazem parte Fernando Riederer, Márcio Steuernagel, Lucas Fruhauf, Luiz Malucelli e Vinicius Giusti. Todos têm entre 30 e 40 anos. Alunos de Maurício Dottori, criaram o grupo em 2002. E, em 2011, após um pequeno hiato, retomaram o contato e resolveram criar em Curitiba, a cidade que os viu nascer como artistas, a bienal. Os membros do entreCompositores não apenas escrevem sua obras: buscam artistas no aeroporto, acertam detalhes de contrato, discutem repertório com os convidados, dobram programas, gravam concertos. "O coletivo não significa trabalhar em conjunto na composição, mas na criação de um contexto no qual exista espaço para a individualidade", explica Giusti, que hoje vive em Bremen. "Quando começamos, promovíamos concertos com uma temática específica e cada um de nós escrevia uma peça que com ela se relacionasse", conta Riederer, radicado em Viena. "Mais do que brigar com os colegas pelos poucos espaços disponíveis, como vimos acontecer em gerações anteriores, percebemos que precisamos nos unir e dialogar para criar novos espaços e alternativas", completa Steuernagel, que vive em Curitiba, onde é regente-assistente de Osvaldo Ferreira na sinfônica da cidade e titular da Sinfônica da Jovem da Universidade Federal do Paraná. "Na Europa, percebe-se a mesma tendência entre os jovens", acrescenta Malucelli, que vive e estuda em Estocolmo. A bienal deste ano conseguiu não apenas a chancela de nomes importantes da cena musical paranaense - o maestro Ferreira, Dottori e o compositor Harry Crowl, que formam o conselho artístico - como parcerias com instituições culturais da cidade. Os concertos foram realizados no Teatro Guaíra, na Capela Santa Maria, no Sesc e no Teatro da Reitoria. E, além de grupos locais, como a Camerata Antiqua (regida pelo compositor carioca João Guilherme Ripper), participaram conjuntos de fora - o Platypus, que Riederer ajudou a criar em Viena; o Myotis Kollektiv, de Bremen, do qual Giusti faz parte; e o cross.art, de Stuttgart. Marcos Balter, brasileiro que dirige o departamento de composição do Columbia College, de Chicago, foi o autor convidado e deu aulas a quatro estudantes que vieram dos EUA, da Irlanda e do Brasil. O diálogo entre essas experiências é uma das marcas do evento, que advoga pelo que os membros do entreCompositores chamam de permeabilidade - conceito fundamental em um mundo sem fronteiras. Nesse sentido, vale lembrar também que os conjuntos de fora não trouxeram apenas obras de autores estrangeiros, mas também se dedicaram a preparar peças de brasileiros como Leonardo Martinelli, Guilherme Bertissolo, Rodrigo Bussad, Daniel Puig e Rafael Nassif. Desse quadro, emerge também uma outra característica desta nova geração apresentada na bienal: se na segunda metade do século 20 a composição brasileira esteve pautada pela briga entre nacionalistas e vanguardistas, hoje o que se vê é a recusa de patrulhas e a aceitação de diferentes estéticas. Balter, em conversa com o Estado, fala da diversidade que observou no contato com os jovens compositores. Ele deixou o Brasil em 1996 e sempre evitou fazer da "brasilidade" uma marca. A onipresença do nacionalismo já não existe - seja como opção, seja como algo a se recusar. Não há mais a necessidade de filiação. E daí nasce uma conversa estética. "As diferenças são expostas de maneira interessante e, da fricção entre as opções de cada autor é que nasce um diálogo rico", diz. "Os anos 50 e 60 foram importantes e perigosos, porque tentaram forçar a noção de que havia apenas uma verdade. Mas essa diversidade não é nova. Quando olhamos para o passado, tendemos a reduzir uma diversidade que sempre esteve presente no trabalho de compositores." O violinista alemão Johannes Haase, do Myotis Kollektiv, concorda. "Em busca da novidade, da liberdade, a América Latina é o lugar para se estar, pois, ainda que dialogue com a música da Europa e dos Estados Unidos, o cenário aqui ainda é novo o suficiente para conseguir introduzir ideias menos viciadas."Pouco antes de ir a Curitiba, Haase integrou a orquestra de Bremen que tocou em São Paulo as sinfonias de Beethoven. E a diversidade de seu repertório leva a uma outra questão, como coloca Giusti: é preciso sensibilizar o intérprete para a nova música. Steuernagel conta que, de 2011 para cá, já sentiu diferença na postura dos artistas da Sinfônica Jovem da UFPR. Harry Crowl, diretor artístico do grupo, concorda. E o maestro mexicano Jaime Wolfson, que regeu a orquestra na bienal, explica como foi o trabalho. Disse aos artistas, no primeiro dia: não queria saber se concordavam com os compositores, se consideravam aquilo música. Queria apenas uma oportunidade. "Vamos nos dedicar ao longo a estas obras, respeitar as intenções dos autores. E, ao fim, sentaremos e vocês me dirão o que acharam, se valeu a pena, se fez sentido, se algo na percepção de vocês se alterou."Deu certo? "Você fica perdido no começo, não consegue se ouvir, tudo parece fora do lugar, mas, de repente, o público vai ficando mais calmo, você começa a ouvir seu colegas, parece que vai para outro mundo", diz um músico após tocar Rua Quinze de Novembro. Um mundo que, nas perguntas e busca de respostas colocadas pelas obras presentes na bienal, parece possível.

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