Outra fábula

Leia a seguir trecho de um capítulo de Domingos Sem Deus, quinto e último romance de Inferno Provisório, do mineiro Luiz Ruffato, que sairá no primeiro semestre de 2011 pela editora Record

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Por Redação
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I merso entre os milhares de calções e camisetas numeradas que, sob um calor de mais de trinta graus, aguardavam impacientes, na tarde do último dia de 2002, em frente ao prédio do Museu de Arte Moderna, pela largada da Corrida de São Silvestre, Luís Augusto, alongando os músculos, especulava se conseguiria vencer os quinze quilômetros de subidas e descidas do trajeto. Afinal, quarenta anos cumpridos, catorze meses antes mantinha-se sedentário, ausentes preocupações outras que não a de alcançar o dia 30, dívidas pagas sem manchar de vermelho a conta do banco. Até, num exame de rotina, o médico da empresa o convocar, Seus níveis de colesterol e triglicérides estão muito altos, e recomendar mudanças na alimentação, diminuição no consumo de bebidas alcoólicas e a prática de exercícios físicos. Amuado, deixou o consultório convencido em não acatar qualquer das sugestões, mas, ao relatar a conversa a Milene, a namorada, entusiasta frequentadora de uma academia de ginástica, imbuiu-se de auxiliá-lo a ludibriar a morte, Vamos correr juntos no Ibirapuera!, ardeu, satisfeita. E, instando-o a adquirir o equipamento (tênis, meia, camisa, chorte, boné), numa segunda-feira de outubro às seis horas da manhã soou o interfone, inaugurando uma rotina que, pouco depois, surpreso, Luís Augusto incorporaria, prazenteiro, ao seu dia a dia. Se estranhou, de princípio, o cansaço que, humilhado, o impedia de acompanhar os passos gazéis de Milene, a dor hasteada em cada um dos seiscentos e trinta e nove músculos, logo invadiu-o o torpor, os pulmões encharcados de ar fresco, o coração irrigando viril cada recôndito do corpo indescoberto. E tão forte abraçou o hábito que, em novembro, tendo a namorada sucumbido a uma gripe, atropelou o acanhamento e suou sozinho nos longes do parque, saudando efusivo desconhecidos com quem cruzava, deverasmente feliz. Tanto, que, no segundo domingo de dezembro, Milene, revolvendo o molho-de-tomate com uma colher-de-pau, encorajou-se, lançando, como que despretensiosa, a seta, E se a gente se casasse? (...) Com a Lívia o casamento arrastara-se por intermináveis quinze anos. Não entendia, agora, como haviam adiado tanto a decisão de se separarem, um desafogo para todos, os filhos, a Iara e o Eric, acompanhando aterrorizados as discussões diárias, os desentendimentos por nadas, a ciumeira estúpida, pois que já não se toleravam, a trágica solidão a que se condenaram. Jornalistas ambos, Lívia não se conformava com o que tinham se transformado seus sonhos. Por conta de três gravidezes complexas (uma delas finda em um traumático aborto), cedera o lugar no mercado de trabalho, e o que restou foram sobras de revisões de livros irrelevantes, dissertações de mestrado e teses de doutoramento, enfadonhas e mal pagas, que lhe devoravam as horas e corroíam os nervos. Mas, agastava-a, ainda mais, o que acreditava ser a resignação do marido, que nunca lograra conquistar uma vaga na grande imprensa, admitindo passivo labutar em jornais de sindicatos, em revistas de circulação-dirigida de obscuras corporações, o que resultava em rendimentos ordinários, sentenciando-os a uma vida medíocre, sem nunca poder projetar algo como uma viagem à Europa, umas férias no Nordeste, uma mudança para um apartamento maior ou a troca dos móveis do quarto das crianças ou mesmo do sofá da sala, nada, porque, ele argumentava, quem garante que haveria dinheiro no mês seguinte? Então, o que idealizara, arrastando sua ingênua rebeldia pelos corredores da Cásper Líbero, após trepidar em ônibus lotados o asfalto da Lapa à Avenida Paulista, uma história de aventuras e novidades, desmoronou em um cotidiano previsível, claustrofóbico.Também Luís Augusto imaginara um futuro diverso, não aquele martírio, aquela tormenta, mas a altiva serenidade de quem assenta, um a um, os sólidos degraus de uma escada lançada no desconhecido. Porque, ao contrário da Lívia, julgava poder orgulhar-se do caminho percorrido. O que era vinte anos atrás? Uma camisa desembarcando, zonza, na Rodoviária da Luz, sem amigos ou conhecidos a quem recorrer. E se recuasse trinta anos? Um menino tímido, pasmado, esquadrinhando as ruas de Cataguases, nos braços um tabuleiro de alumínio coberto por um alvo pano-de-prato, pastéis, coxinhas, rissoles, quibes, croquetes e empadinhas que a mãe industriava e que amortizavam as dívidas caseiras, que o pai, autonomista, como clamava, batendo-cabeça ali e aqui, sempre desendinheirado, ampliava, adquirindo atlas, enciclopédias e dicionários que impingia ao caçula, na esperança de que pelo menos ele não se convertesse em empregado dos Prata, como o mais-velho e a menina, para seu desalento. E candeou-o para as cadeiras noturnas do curso de Contabilidade, Se tiver tino, pelo menos comer algodão você não vai, onde, extenuado, dormitava sobre livros-caixa, livros-razão, borradores, balancetes e balanços, após uma jornada de faz-tudo na redação d"O Cataguases, "estágio sem remuneração" que o pai conquistara junto ao redator-chefe do jornal, doutor Divaldo Sobrinho, "Não se preocupe, senhor Raul: a bove majore discit arare minor", em troca de uma arisca promessa, nunca realizada, de, sacrificando seus ideais, cabular votos para a situação nas eleições vindouras.Até que a clara luz de um janeiro febril, alastrando-se quarto adentro, espertou o ensopado corpo magro e pálido. Viu então que os picumãs e as teias-de-aranha permaneciam pendurados, estalactíticos, entre os caibros esqueléticos, apesar do rogo da mãe, as juntas dos dedos enferrujadas pelo reumatismo, para que alguém os desmanchasse com o vassourão; viu, na parede ainda úmida, a marca-d''água das infalíveis enchentes de verão; viu a cama irretocavelmente arrumada aguardando ansiosa o cansaço de Lalado, que puxava móveis para a Bahia, esperançoso de adquirir um caminhão, com esforço e trabalho, dali a alguns anos; viu a mesinha, em cuja gaveta cupins insaciáveis devoravam o diploma da Escola de Datilografia e Estenografia da Rua do Comércio; viu o guarda-roupa, cujas portas desengonçadas deixavam entrever o desalento das camisas e calças, silenciosamente suspensas nos cabides. O barulho longínquo de um trovão assustou-o, pensou em levantar-se de vez, fazer algo, não podia manter-se ali, estático, uma tempestade se avizinhava, devia tomar providências, agora que cumprira o tiro-de-guerra e que o doutor Divaldo Sobrinho, pomposo, anunciara o fim do "estágio sem remuneração", "Via trita, via tuta", a mocidade da Júlia esgarçando-se entre os ruidosos teares da Manufatora, o Toninho, ajustador-mecânico na Industrial, economizando para casar, em breve, o tempo engolindo entendiado as horas, o pai, encanecido, planos estrambóticos debaixo dos braços, colhendo zombarias pela cidade, Raul Salgado, debochavam, aludindo aos quitutes que alimentavam a modesta casa no Beira-Rio.Então, decidiu. Pôs-se de pé, dirigiu-se ao banheiro minúsculo, sempre fedendo a mofo, mijou, lavou o rosto minado de cravos e espinhas, vestiu bermuda e camiseta branca, calçou os chinelos-de-dedo, e enfrentou os íngremes degraus que levavam ao quintalzinho, recanto sombrio que comportava quatro leiras de murchos pés de couve, taioba, alface, salsinha e cebolinha, ladeadas por duas goiabeiras raquíticas e dominadas, ao centro, por uma jabuticabeira pelada das folhas, onde governava absolutista o Dinamite, um viralata estabanado, cínico e covarde, que adulava qualquer pessoa em troca de um simples olhar cúmplice. O cachorro veio pulando em sua direção, rabo nervoso, hipocritamente tentando agradá-lo, Pára!, Dinamite, Pára!, chamando a atenção da mãe, que, no porão, às voltas com um enorme tacho de óleo quente, fritava salgadinhos, auxiliada pela comadre meio-parente, a dona Nica, que ressurgia quando apertavam as encomendas. Bença, Deus te abençôe, meu filho, Já tomou café?, tem pão fresquinho em cima da mesa, Não, mãe, depois eu como. Bom dia, dona Nica. Bom dia, Guto. Ouviu-se novamente o estrondar de um trovão, mas agora mais distante, lá para os lados de Leopoldina, Será que chove?, a mãe indagou, Chove nada, respondeu a companheira, recheando entretida a massa de uma coxinha.Mirou a mãe, a pele do rosto crestada, rugas de uma velhice antecipada, os braços e as mãos pintalgados de manchas-de-sol, toda a vida debruçada a um fogão, labutando manhã à noite, escrava dos seus, ausentes fins de semana, feriados, nada de festas, nada de alegrias comezinhas, nunca um desejo, visitar os parentes dispersos por Ubá, Astolfo Dutra, Juiz de Fora, conhecer o mar em Marataíses, passear à toa na Praça Rui Barbosa ou na Rua do Comércio, apenas a primeira missa domingueira na Matriz de Santa Rita de Cássia, ano após ano assistindo os filhos crescerem, os dias virarem noites virarem dias, e, de supetão, anunciou, Mãe, vou embora pra São Paulo, porque sabia, demorasse muito talvez permanecesse para sempre atolado naquela cidade, naquele bairro, naquela morada, naquele pedaço estagnado do tempo, e ela, atônita, perguntou, Embora? São Paulo? Desde quan, mas nada mais escutou, galgou os degraus, dois em dois, bateu a porta da rua e andou a esmo, a tudo contemplando, os amigos, os inimigos, os conhecidos, os estranhos, os homens e as mulheres, os rapazes e as moças, os velhos e as velhas, as crianças e os bebês, as árvores copadas, as mudas mirradas, as fábricas de tecidos, as oficinas mecânicas, as bancadas de eletricistas, as bancas de jornais, as lojas e os armarinhos, os armazéns e as quitandas, as padarias, as lanchonetes, os bares, os botequins, os carros e os ônibus e os caminhões e as carretas, os gatos, os cachorros, os fícus, as sibipurunas, os salões paroquiais, os salões dos crentes, os salões de cabelereiros, os salões de dança, os prostíbulos, a Prefeitura, os hotéis suspeitos, a Câmara Municipal, os estádios de futebol, os campos de pelada, os centros culturais, os centros espíritas, os centros de macumba, o Centro, o Rio Pomba, o Rio Meia-Pataca, o córrego Lava-Pés, o córrego Romualdinho, a Ponte Nova, a Ponte Velha, o colégio, o ginásio, os grupos-escolares, a escola de samba,como se a primeira vez, sendo a última.São Paulo é um mundo, as palavras do pai ressoaram na noite iluminada por uma enfermiça lâmpada de quarenta velas, sombras disformes escorrendo pânicas pelas paredes. Sentados à mesa, recoberta por uma puída toalha xadrez, devoravam a broa-de-fubá, ainda quente, recém-desenformada. A mãe, encurvada, arrastando suas varizes de um lado para o outro, perguntava, Mais café, quer?, adivinhando, angustiada, que naquele exato instante perdia o caçula, irremediavelmente... O Toninho mastigava satisfeito, todo-olhos para a noiva, a Delinha, filha do falecido seu Miguel Carroceiro, que Deus o tenha!, que retribuía, recatada, sorrisos envergonhados. A Júlia, rodando a Praça Rui Barbosa, bateando alguém que pudesse libertá-la daquela sina, daquela escrita, operária de fábrica; o Lalado, rodando pela Rio-Bahia, Roberto Carlos esgoelando no toca-fitas. Não deixe de procurar lá o Juca, meu filho, disse o pai, referindo-se ao irmão que morava em São Bernardo do Campo. Ele pode ser útil nesses primeiros tempos... O... Hélton... genro dele, aquele que tem uma oficina mecânica, lembra?, casado com a... como é mesmo o nome dela, ô Jânua? Sabe não?... A gente não pode desprezar essas coisas... Procura sua madrinha, a comadre Alzira, coitada, agora que está viúva... Fala com a Nelly, com o rapaz, filho dela, como é mesmo o nome?, Nílson!, pois fala com o Nílson, ele deve de conhecer bastante gente lá. Alheios, o Toninho e a Delinha deslizavam arrulhando em direção ao ponto-de-ônibus, iam acompanhá-lo à rodoviária; a mãe, Vou não, meu filho, tanta coisa pra fazer, o Dinamite, coitado, abraçando-o, irrompeu em choro, em queixas; em ais; o pai, à parte, sussurrava, engasgado, Que bobagem, ô Jânua, queria o quê, que o menino ficasse aqui, capacho dos Prata? É isso? Fosse mais moço, eu é que ia embora, São Paulo é um mundo, Lá, quem tem força de vontade, vence. Agarrou a alça da mala-de-papelão azul, que a mãe comprara a prestações nas Casas Philippe, e cuidadosamente dobrara e arrumara, peça por peça, as poucas roupas, e desapareceu na escuridão adocicada das damas-da-noite.

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