PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Ousadias mineiras

Murilo Rubião, que neste 1.º de junho faria 100 anos, não deixou apenas 33 contos, 33 joias que haverão por certo de atravessar ao menos mais um século. A ele a cultura brasileira deve também a existência de uma publicação que, contra ventos e marés, aí incluídas perseguições sob a ditadura militar, completará 50 anos em setembro próximo: o Suplemento Literário de Minas Gerais, editado hoje por diminuta e brava equipe, sob o comando do contista e romancista Jaime Prado Gouvêa.

Por Humberto Werneck
Atualização:

Nasceu, em 1966, como encarte semanal do Minas Gerais, o diário oficial mineiro. Teria sido coisa muito mais modesta, não fosse a ousadia de Murilo, à época funcionário da Imprensa Oficial. Pediram a ele que recriasse na aridez do Minas Gerais uma página literária que existiu bem antes de lá trabalhar Carlos Drummond de Andrade, entre as décadas de 1920 e 1930. Por que não um suplemento? – contrapropôs Murilo.

PUBLICIDADE

Na praça literária de Belo Horizonte, a ideia foi recebida com a indiferença, o ceticismo e o desdém que tantas vezes dão corpo ao espírito provinciano. Muitos acharam que seria preciso recorrer a traduções, pois não haveria grandes nomes com que encher as páginas.

Não era o que pensava Murilo, por ter viva a recomendação de Mário de Andrade a Drummond e sua turma, quando os novos de 1925 engatilhavam A Revista: até como estratégia para não levar porrada, disse Mário, convinha misturar autores novos e veteranos.

Desde o começo, Murilo tratou de pôr lado a lado nomes consagrados, como, entre os mineiros, Emílio Moura e Henriqueta Lisboa, e o sangue novo de Luiz Vilela e Sérgio Sant’Anna, por exemplo. Até mesmo passadistas como Eduardo Frieiro, de nariz ainda torcido para o já grisalho Modernismo, tiveram espaço no suplemento de Murilo Rubião.

Fez ele mais que misturar gerações: quis uma publicação que se ocupasse não só da literatura como da arte em geral. Além de ficção, poesia e ensaio literário, o cardápio do jornal, naqueles começos, abria-se ao cinema, ao teatro, às artes plásticas.

Publicidade

Essa disposição de Murilo ficou bem clara quando convocou o talento polivalente de Márcio Sampaio – poeta, contista, artista plástico e crítico de arte, além de jornalista. O faro de Márcio permitiu que o SLMG formasse uma equipe de ilustradores que mesclava novatos, como José Alberto Nemer, a artistas já reconhecidos, como Álvaro Apocalypse. Ou Jarbas Juarez, encarregado também de garimpar, entre seus alunos na Escola de Belas Artes, ilustradores para a ficção e a poesia de autores igualmente jovens – cuja seleção, por sua vez, era feita por Murilo, Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo.

Tive a sorte incomparável de ser admitido naquele time, no emblemático mês de maio de 68, e pude assim participar da melhor fase do SLMG, a dos três primeiros anos, aqueles em que esteve sob o comando de Murilo Rubião – de longe, o intelectual mais generoso e isento de preconceitos com quem já cruzei. Murilo fez do suplemento não a trincheira de uma panelinha, como costuma acontecer, mas um espaço acolhedor para uma federação de diversificados grupos literários. Sem posar de cacique, deu vez e voz a todo escritor jovem que lhe pareceu merecedor de oportunidade, ainda quando a produção não batesse com o seu gosto.

A nós, os privilegiados a quem deu também emprego, Murilo proporcionou, de quebra, o enriquecedor convívio com habitués da redação, entre eles o doce Emílio Moura, o malicioso Bueno de Rivera, o sábio Francisco Iglésias, ou forasteiros como Otto Maria Carpeaux, Roman Jakobson, Ungaretti, Décio Pignatari, tantos outros. Ah, e Clarice Lispector, com quem Murilo me encarregou de fazer uma das primeiras entrevistas de minha involuntária carreira de jornalista, incumbência da qual resultaria desastre tão exemplar que valerá relato à parte...

Sob o comando de Murilo Rubião, ajudamos a fazer o melhor suplemento literário do final dos anos 1960, só comparável ao que então editava O Estado de S. Paulo. Parte da edição era remetida a bem escolhidos leitores de vários pontos do Brasil e do mundo. A fatia maior era encartada no Minas Gerais, o único jornal que chegava a cerca de 200 pequenos municípios mineiros – razão pela qual não raro vinham, das profundas de Minas, protestos contra o que seriam ousadias do SLMG. Causou inolvidável bafafá a publicação, na primeira página, de um poema em que Affonso Romano de Sant’Anna chamou o Empire State Building de “pênis maior do mundo”.

Minas, aliás, era onde o SLMG fazia menos sucesso. Cortázar lia em Paris a publicação que em Belo Horizonte era ignorada pela pequenez liliputiana de escribas provincianos. Nele escreveram os graúdos da literatura brasileira – Drummond, Murilo Mendes, Antonio Candido, João Cabral, Augusto de Campos, Lygia Fagundes Telles e mesmo o esquivo Dalton Trevisan, para citar apenas alguns dos colaboradores de fora de Minas Gerais.

Publicidade

PUBLICIDADE

Os céticos que no início aconselharam Murilo a fazer um jornal à base de traduções também se viram atendidos: graças, sobretudo, a Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, divulgou-se farta e bem selecionada produção estrangeira naqueles três primeiros anos. Foi talvez no SLMG que pela primeira vez se publicou no Brasil um conto de Cortázar, Todos os Fogos o Fogo, traduzido por Laís em julho de 1968.

A primeira e gloriosa fase do suplemento encerrou-se, já se disse, com a saída de Murilo. Em seu lugar deveria entrar Rui Mourão – cujo nome, porém, foi vetado pelos militares. Começava ali um longo e tormentoso período, cujas agruras haverá quem conte bem melhor que eu.