Otto Maria Carpeaux, no 'Suplemento Literário'

No centenário do criador de 'A Canção da Terra', crítico discutia significado de sua obra para a vanguarda

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Por Otto Maria Carpeaux
Atualização:

O artigo 'Música do Diabo e de Deus' foi publicado no 'Suplemento Literário' do Estado em 2.7.1960

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  Neste ano em que no Brasil, assim como no mundo inteiro, se comemoram o sesquicentenario do nascimento de Chopin e Schumann e o centenário do nascimento de Hugo Wolf, seria injusto esquecer que há cem anos também nasceu Gustav Mahler. Lá fora não esqueceram, nem na Austria nem na Inglaterra e Holanda nem, sobretudo, nos Estados Unidos onde se fundou a "Gustav Mahler Society of America", enquanto a Orquestra Filarmonica de New York já apresentou ao público um Festival Mahler, dirigido por Mitropulos, Leonard Bernstein, Szell e Bruno Walter (outros Festivais Mahler foram organizados por Munch em Boston, Ormandy em Philadelphia, Reiner em Chicago). As deficiencias da nossa vida musical não permitem seguir desse exemplo. Mas pode-se e deve-se lembrar a memoria do mestre.

 

Gustav Mahler nasceu em 7 de julho de 1860, em Kalist, pequena cidade da Moravia, então Austria, hoje Checoslovaquia. Mas não é possível chama-lo de checo. O ambiente da sua infancia foi o mesmo que produziu seus conterraneos Freud e Kafka: uma pequena comunidade judaica, em cidade de maioria eslava e minoria alemã; aderindo à civilização alemã embora esta os rejeitasse. Os filhos melhor dotados dessas comunidades foram cedo para Viena, a capital, onde se tornaram grandes intelectuais austriacos. Mas nunca esqueceram. As canções populares, marchas militares, ladainhas de aldeia e danças folcloricas da Moravia também vivem, inspirando-a, na musica de Mahler, intelectual requintado, compositor pós-wagneriano: elementos discordantes, problemáticos, assim como foi problematico o homem Mahler. Assim como ainda hoje é "problematica", discutivel e discutida, sua musica.

 

Já vivem só poucos que o conheceram pessoalmente. Mahler é uma lenda. É a figura central da ultima grande epoca musical de Viena. De 1897 a 1907, dirigiu a Opera Imperial, elevando-a a primeiro teatro lírico do mundo naqueles anos. O elenco de cantores que reuniu, foi incomparavel; e reuniu-os realmente, banindo rigorosamente a vaidade dos virtuosos da garganta e subordinando-os a um elaboradissimo estilo de representação musical e cenica. As recitas das operas de Mozart, do "Fidelio", dos dramas musicais de Wagner (pela primeira vez, sem corte nenhum) foram tão perfeitos que servem até hoje de modelos. Foram resultados de 50, de 100, de inumeros ensaios que inspiraram aos cantores e aos musicos de orquestra uma rancorosa hostilidade contra esse fanatico do trabalho que Mahler foi, implacavel contra os outros e implacavel contra si proprio; enfim, matou-o a doença do coração fatigado. A esse preço foi Mahler o maior, talvez, de todos os regentes de orquestra. Por fora, seu comportamento burlesco, os gestos exagerados e as caretas do homem faziam rir; lembrava o Kapellmeister Kreister, o personagem de musico genial e louco que E. T. A. Hoffmann inventara. Mas ninguém desconhecia enfim, nesse homenzinho magro e meio comico, o grande magico que sabia, como nenhum regente, decifrar os segredos encerrados nas sutilissimas e complicadissimas partituras de "Don Giovanni" e "Tristão e Isolda". Toda essa arte de interpretação musical está perdida para sempre, porque naquele tempo a tecnica fonografica ainda não era capaz de fixá-la. Quem sabe se Mahler seria, hoje, tão endeusado como em sua epoca? Foi um regente romantico-subjetivo, um autentico beethoveniano; o que hoje já passou da moda. A mesma duvida também se refere às obras originais do compositor. Mas estas, ao contrario daquele subjetivismo de interpretação, estão hoje alcançando sucesso inesperado, internacional.

 

Depois da morte de Mahler, suas obras foram, durante muitos anos, executadas quase só na Austria e na Holanda, graças aos esforços dos seus discipulos Bruno Walter e Willem Mengelberg. O nazismo quis fazer esquecer, também nesses países, o compositor judeu. Hoje, as estatisticas da revista "Musical America" de mostram que Mahler é, em todos os paises dotados de organizada vida musical, um dos compositores mais ouvidos. Suas obras ocupam lugar firme no repertorio historico dos concertos de orquestras, logo depois de Beethoven, Brahms e Bruckner. Mas justamente essa recepção de Mahler pelo repertorio historico parece afastá-lo das preocupações e dos anseios da musica de hoje.

 

Realmente, o compositor Mahler, embora tendo, passado pela escola de Wagner e Bruckner, foi um ultimo beethoveniano: pela forma musical e pela emoção romantica. O critico moderno, não só o "moderno", tem o direito de perguntar se essa musica "tardia" (como diria Spengler) sobreviverá. E, para não ser injusto, começará com a tentativa de determinar a posição de Mahler na evolução historica. É assunto dos mais complexos.

 

Brahms, que ainda chegou a ouvir as primeiras obras de Mahler, rejeitou-as com sua habitual severidade. No entanto, analistas modernos não deixam de descobrir a influencia brahmsiana em todas as obras de Mahler, inclusive nas ultimas. É esse elemento classico-vienense que contribuiu para perturbar, em Mahler, a influencia preponderante de Wagner e Bruckner. O resultado foi aquilo que se costuma chamar de "crise pós-wagneriana" de 1900, a mesma na qual também se debatia um Reger. E da qual só se saiu pelo caminho de Debussy e Ravel.

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É certo que Mahler não conseguiu superar, musicalmente, essa crise. Mas superou-a espiritualmente. Por isso chegou a exercer influencia consideravel na musica vienense moderna, especialmente em Alban Berg. É fato conhecido a grande admiração de Schoenberg por Mahler. Um schoenbergiano como Krenek podia terminar, congenialmente, a inacabada X Sinfonia. Nesse sentido pertence Mahler à época revolucionaria da Viena de 1905 e 1910, quando nessa cidade eram contemporaneos Schoenberg, Kokoschka, Freud, o neopositivista Ludwig Wittgenstein e o professor Masaryk, profeta da renascença dos povos eslavos; nessa época na qual o jovem Hitler errava pelas ruas da cidade, enquanto um certo Trotzki passava os dias e as noites no Café Central, jogando xadrez e esperando sua hora. Foi um mundo em movimento. E Mahler foi um dos protagonistas desse movimento, embora só o dominasse com a batuta na mão; no resto, um homem sofredor, um judeu que quis ser alemão, um intelectual que quis ser povo, um doente que procurava febrilmente a vida, um cetico que ansiava pela fé.

 

Todas essas contradições violentas estão reunidas, superadas; transfiguradas na "Canção da Terra" (prefiro, aliás, traduzir "Lied von der Erde" por "Cantico da Terra"). É sua obra capital indiscutida, talvez a mais comovente e certamente a mais emocionada que neste seculo se escreveu. E o resto? De primeira ordem também são os "lieds" em estilo deliberadamente popular, quase folclorico, embora com complicadissimo acompanhamento orquestral: "Lieder ausdes Knaben Wunderhorn", "Kindertotenlieder". Depois as duas grandes sinfonias em que Mahler resolveu, em momentos decisivos, incluir "lieder" assim: A II e a IV Sinfonia. Estas as obras que se mantêm firmes no repertório. As outras são desiguais, embora em quase todas elas se encontrem trechos de alta categoria: o inesgotavel Adagietto da V Sinfonia: o finale da VI Sinfonia: o primeiro movimento da VII Sinfonia; o primeiro movimento da IX Sinfonia. É uma pena que sejam raramente ouvidos. Já não podemos igualmente admirar aquela obra, das últimas, que foi seu unico grande sucesso, como compositor, em vida: a enorme VIII Sinfonia, composição colossal do hino "Veni, creator spiritus" e da ultima cena de "Fausto", para varios côros e uma complicadissima orquestra de mil figuras. É o drama espiritual de Mahler, posto em musica. Mas a orquestração exorbitante, quase sensacinalista, inspira duvidas: a ambição foi maior que a capacidade criadora. A música de Mahler talvez seja a mais fortemente emocional que jamais se escreveu, embora não se tratasse de emoções eroticas, e sim de paixão demoniaco-sacral. Quem pretende intimamente compreender essa musica, tem de aceitar o emocionalismo, tem de vivê-lo assim como Mahler o viveu, cuja profunda sinceridade está provada pela maneira por que sacrificou a vida à arte: a doença do coração só o matou pelo exagero de trabalho.

 

Sem duvida, esse emocionalismo super-romantico não é, em nenhum sentido da palavra, moderno: nem é da moda nem é da nossa época. A musica de Mahler é "impura". É, fatalmente, suspeita às gerações novas, ocupadas e preocupadas com novas experiencias tecnicas. Mas quem sabe se esta não parecerão, daqui em alguns anos, tão pouco modernas como hoje nos parecem os experimentos tecnicos de Mahler. Mas então, as experiencias tecnicas de hoje estarão realmente superadas por outras, enquanto a musica de Mahler (ou grande parte dela) tem melhores chances de sobreviver: porque a significação dessa musica não é tecnica, mas profundamente existencial.

 

Já abusaram muito dessa palavra "existencial", mas na tentativa de definir a musica de Mahler é dificil evitá-la: a duvida torturante e a certeza de ressurreição gloriosa, a rebelião titanica e a penitencia contrita, as danças freneticas e a angustia da morte, tudo isso entrou nessa musica, cheia de dissonancias gritantes, de tristeza desesperada, de desordem caotica; mas nos melhores momentos respondem à confissão do coração que se sente condenado, às vozes infantis de anjos, à representação musical de uma luz que lembra paraisos perdidos e talvez nem para sempre perdidos.

 

Certos aspectos da personalidade humana e artistica de Mahler inspiraram a grande criação de Thomaz Mann, o compositor Adrion Leverkuehn, que vendeu a alma ao demonio e pagou o preço da loucura. Mas a semelhança para aqui Gustav Mahler fez seu pacto não com o demonio, mas com Deus. Também teve de pagar o preço. A vida estava perdida. Mas a alta arte estava salva e a alma redimida.

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