Oscar Wilde: um viajante pelo lado sombrio da vida

Revolucionário, o autor disseca a sociedade, do grotesco à extravagância

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Por Agencia Estado
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Como tantas vezes acontece, um grande livro é inspirado por um grande amor. O Retrato de Dorian Gray, único romance de Oscar Wilde, é produto em parte da paixão que o escritor, mesmo casado, sentia por John Gray, um aspirante a poeta de 26 anos, que ele adotou e depois tornou seu amante. Gray era filho de um carpinteiro e praticamente era um autodidata. Chamar o protagonista da história com o nome do namorado impressionou o rapaz, que nas cartas ao escritor assinava "Dorian". Tal ligação passa nas únicas palavras que, no romance, Dorian Gray se lembra de ter ouvido de alguém: "O mundo se transformou porque você é feito de marfim e ouro. Os contornos de seus lábios reescrevem a história." Oscar Wilde gostava de contar histórias sobre retratos e, inspirado por obras tão díspares como A Pele de Onagro, de Balzac, O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, Fausto, de Goethe e Sidonia, de Meinhold, armou a trama baseada no mito da imagem vindicativa que se volta contra seu modelo - ecos da luta pai-filho e homem-Deus. Partiu de uma idéia romântica convencional: um jovem que vende a alma em busca da eterna juventude, mas a ela agregou o tema da arte enfrenta a vida. Wilde nunca escrevera nada tão grande e penou para concluir o livro, comentando numa carta para uma amiga: "Receio que se pareça bastante com minha vida - repleto de conversas e nenhuma ação." O romance, que foi publicado pela primeira vez em 20 de junho de 1890, na revista Lippincott´s Monthly Magazine, revolucionou a literatura da época. Não é uma obra perfeita, mas um dos talentos de Wilde era escrever com uma elegante negligência, como se fosse uma diversão (ele mesmo descrevia o estilo maciço de Henry James como "um penoso dever"). O que ele quis narrar? Uma fábula sobre tentar tirar da vida mais do que ela pode dar. Na história, Dorian Gray é um homem jovem e bonito que cultua a beleza e o prazer. Quando Basil Hallward, um amigo pintor, oferece-se para fazer seu retrato, Dorian sofre com a idéia da rapidez com que passarão sua juventude e bela aparência. Graças à magia de um pacto que fez, todos os males da vida não deixarão nenhum traço no rosto de Dorian; apesar dos seus vícios e crimes, ele fica jovem e puro. Mas seu retrato, escondido, é que mostra os sinais do tempo e da corrupção. O retrato vive lembrando a Dorian o mal da sua vida dupla. Finalmente, desesperado, Dorian esfaqueia o retrato e morre como se ele próprio tivesse sido golpeado. Seus criados acham o retrato mostrando um homem jovem e belo, enquanto o cadáver é de uma aparência repulsiva. Os críticos contemporâneos de Wilde, além de condenarem o que achavam de excessos no texto, a aberta homossexualidade de Dorian, algo inédito na literatura da época, atacaram a pouca humanidade dos personagens. Na verdade, eles são mais temas do que personagens, mas a trama não precisava de mais. Hoje, se lê O Retrato de Dorian Gray mais como uma história gótica de terror, fascinante pela tentação da impunidade, em que o conflito da arte e da vida ocupa um segundo plano. Muito mais evidente, em tempos pós-freudianos, é a presença do duplo no romance, a questão do desdobramento da personalidade em faces antagônicas. O Retrato de Dorian Gray provocou escândalo, mas sua qualidade é inegável como um relato imaginoso e hipnótico, tantas vezes imitado. E teve a particularidade de marcar o destino de Wilde: graças a ele é que lorde Alfred Douglas, o jovem por quem se apaixonou e acabou provocando sua queda, quis conhecê-lo. Ao se encontrarem, Douglas disse que lera o romance muitas vezes seguidas e elogiou tanto o livro que Wilde lhe deu um exemplar de luxo. Com O Retrato, a importância de Wilde na vida literária inglesa ficou marcada. Com seus poemas e com os Contos de Fadas, ele era uma bela promessa, mas com seu romance, ocupava um lugar original entre os artistas britânicos. Mas o sucesso popular mesmo viria com suas peças, escritas mais tarde. A primeira foi O Leque de Lady Windermere, antes chamada Uma Boa Mulher. De 1893, ela tem como cenário a sociedade elegante de Londres. Lady Windermere é salva de um erro irremediável com relação a seu marido pela sra. Erlynne, que todo mundo acredita ser a amante de lorde Windermere. Quando ela está a ponto de se comprometer gravemente, novamente a sra. Erlynne é que se apresenta para salvá-la, evitando revelar sua identidade. A história tem uma conclusão moralista, mostrando que o sentimento é superior à rigidez dos puritanos. Para o autor, o puritanismo é fonte tanto de corrupção quanto da devassidão e a bondade excessiva é tão nociva quanto a maldade. Wilde faz uma ironia sutil perpassar por tudo, sobretudo pelos diálogos magistralmente arquitetados. Wilde faz uma revolução no teatro inglês que ora seguia os modelos elizabetanos, ora imitava o teatro romântico de Victor Hugo. Ele toma como ponto de partida a farsa fin de siècle, cheia de subentendidos no diálogo, coincidências divertidas na marcação e sobretudo um humor de situações inesperadas que faziam o público rir. É o que usa, mas dando ao modelo uma dimensão nova que ia além da diversão superficial e inconseqüente. A partir de O Leque de Lady Windermere, o teatro de Wilde está a serviço do desmascaramento da hipocrisia vitoriana, da condenação dos políticos e dos socialites vazios e corruptos. Duas peças menores repetem as novidades de O Leque..., Uma Mulher sem Importância (1893) e O Marido Ideal (1895). Reorganizando certos elementos de sua peça de estréia, Uma Mulher... também gira em torno de um segredo, que é o fato de Gerald Arbuthnot ser o filho ilegítimo de lorde Illingworth (a revelação ocorre porque o lorde está interessado um tanto demais no rapaz de 20 anos - e a mãe intervém, reconhecendo no sedutor o homem com quem teve o filho). Mas esse segredo já é revelado no segundo ato. E transforma-se na história da descoberta do filho abandonado pelo pai. A peça é a mais fraca das que Wilde escreveu, indo do drama à comédia, mostrando personagens femininos mais definidos que os masculinos: por meio das mulheres, Wilde disseca a sociedade, do grotesco à extravagância, e lança epigramas à vontade. O Marido Ideal coloca em cena Robert Chiltern, que aos 22 anos, começou sua fortuna e sua posição política, vendendo segredos de Estado, uma transgressão até mais grave que as da sra Erlynne e da sra. Arbuthnot, das peças anteriores. O marido ideal é uma fraude, tanto quanto lady Chiltern é uma puritana de fachada; a grande personagem da peça é a irreverente aventureira lady Cheveley, que quer aproveitar os apuros de Chitern para os próprios fins. Entre o desmascaramento da hipocrisia e a presença crescente da ternura entre lorde Goring e a irmã de Chiltern, Mabel, e seu pai, a peça tem seus méritos, embora não se compare ao melhor que Wilde escreveu. A Importância de Ser Prudente, de 1895, traz no título original (The Importance of Being Earnest) um trocadilho com o nome do protagonista, Ernest. Aliás Ernest é o nome falso que ele, John Worthing, adota para conseguir o amor de Gwendolen Fairfax. Ele também se faz passar por irmão do amigo Algernon. Depois descobrem que, na verdade, os dois são irmãos. Descobrem então que, exatamente na primeira vez que falaram algo verdadeiro, estavam contando uma mentira. No fim da confusão, há um triplo casamento. A intriga não é o mais importante na peça, mas a junção de diálogos muito divertidos e de situações surpreendentes. A Importância talvez seja a peça mais representada de Wilde até nossos dias. Foi a mais fácil de escrever para ele, que revelou que os diálogos fluíam de sua pena. A Importância... é sua peça mais econômica, colocando em cena sua máxima de que as coisas fúteis devem ser tratadas com seriedade e as coisas sérias vistas com a maior futilidade; é visível que Wilde se divertiu muito ao trocar os pecados da libertinagem pela obsessão insáciável e egoísta de Algernon por sanduíches de pepino. Há um irmão mau, mas ele é exatamente Algernon; um personagem de vida dupla faz isso apenas para evitar compromissos chatos. O desmascaramento final, que em Dorian Gray era a morte e o horror, aqui se resolve num casamento que parece uma cerimônia de marionetes. Aqui, nada de sombrio, de oculto. Os males do mundo ficam a distância, no texto muito engraçado e paradoxal em que Wilde, finalmente, se livra das convenções e das fraquezas para atingir um nível maduro de comediógrafo. Nos seus últimos anos, Oscar Wilde ainda produziu obras memoráveis, sobretudo De Profundis (que foi publicado postumamente), na verdade uma longa carta de amor do escritor ao namorado "Bosie" Douglas, em que ele faz uma espécie de monólogo dramático, falando sobre dor, pecado, solidão, a descoberta da fé e sobre sua vida e personalidade, e o poema A Balada do Cárcere de Reading, de 1898, escrito durante sua prisão, em memória do soldado C.T.W., condenado a ser enforcado por ter assassinado a mulher que amava. Wilde trata do tema da piedade por todos os prisioneiros, da psicologia do homem condenado e de uma comparação entre a justiça dos homens que se abate sem piedade e a justiça divina que, transformando-se em misericórdia, faz surgir uma nova vida. Nesse poema sombrio, exagerado, mas de versos muito bonitos de descoberta da fé e da humildade, Wilde tem uma de suas obras-primas. Brilhante, irreverente, rebelde e revolucionário, Wilde hoje pode ser visto como um homem que usou a vida toda uma máscara de "nonchalance" e espírito para se esconder de todos e dele próprio, da sua fascinação pelo avesso sinistro do retrato. Quando essa máscara teve de ser arrancada, ele desabou. Restou, para os outros, para nós, sua obra.

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