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Os vira-latas do Bumba

Por Maria Rita Kehl
Atualização:

A chuva no Rio deu uma folga, mas espero que o assunto não saia dos noticiários. Não é hora de esquecer a catástrofe causada não pela intempérie, mas pelo descaso habitual do poder público em relação à vida dos pobres. No momento em que escrevo, a contagem das vítimas está em 412 feridos resgatados dos escombros em todo o Estado. E 251 mortos. Por enquanto.Entre as muitas imagens dos deslizamentos, não me sai da cabeça a foto de um cachorrinho vira-latas encontrado com vida depois de três dias soterrado no Morro do Bumba, em Niterói. O pelo encharcado, dorso arqueado como fazem os cães com muito medo, rabo entre as pernas, claro - e aquele olhar de interrogação que só os bichos domésticos têm quando sofrem: "O que eu fiz pra apanhar assim? Cadê o meu pessoal? Onde estou?" Imagem muda de desolação e desamparo, o vira-latas do Morro do Bumba teve mais sorte do que muita gente, e com certeza terá mais facilidade de encontrar um novo lar. Também são sortudos os cães farejadores que passaram mal com o cheiro do gás metano do antigo lixão e puderam descansar até terem condições de procurar os corpos das pessoas que viviam em cima do mesmo cheiro de gás.É injusto que o sofrimento de um animal nos comova tanto assim. Talvez isso ocorra por conta de seu estatuto de vítima radical, 100% inocente e ignorante a respeito da tragédia humana, sempre humana, que o abateu. Penso na matança dos cavalos pelos capangas do Hermógenes, em Grande Sertão: Veredas. Muitos amigos de Riobaldo morrem na batalha da fazenda dos Tucanos, mas Guimarães Rosa capricha na emoção ao descrever a execução covarde dos cavalos presos, que não podem fugir. Não me espanta que o vira-latas salvo da lama e do lixo nos faça chorar. Mas por que não sentimos comoção muito maior diante de tanta gente desesperada, sem casa, no fim de suas forças a procurar ainda pelos filhos, pais, esposos/as, amigos? Por que não nos desesperamos diante desses e outros, entre os milhões de brasileiros que ainda vivem vulneráveis não apenas às chuvas, mas a tudo, tudo?Ou então, a comoção que sentimos nesse caso talvez seja de natureza diversa da que produz lágrimas fáceis. Talvez esteja mais perto do desespero e da resignação humilhada do que da piedade.No ensaio Da Tristeza, Montaigne se indaga sobre o episódio narrado por Heródoto no qual o rei egípcio Psammenit, derrotado pelo persa Cambises, vê desfilarem diante de si a filha vestida como escrava e o filho a caminho da forca. Psammenit suporta, cabisbaixo, a tragédia que abate seus filhos; mas explode em lágrimas ante a visão de um velho amigo da família (a tradução é controversa: amigo ou criado?) que pede esmolas aos soldados, como um mendigo faminto. Montaigne considera a possibilidade de que a visão do velho amigo teria sido a gota d"água que fez transbordar o "copo até aqui de mágoa" do rei vencido. Mas considera também o relato de Heródoto, para quem a dor ante o destino dos familiares do rei era grande demais para ser chorada. As grandes dores estariam além de qualquer possibilidade de expressão.É mais suportável sofrer pelo cachorrinho do que pelos moradores do Morro do Bumba, assim como parece mais imediata nossa identificação com a impotência dele. Conhecemos a ladainha do fatalismo brasileiro: primeiro se tenta o jeitinho, a viração. Vamos que vamos; se não piorar, já está bom. Depois vem a calamidade (Chuva? Seca? Expulsão da terra? Bangue-bangue??) e a tragédia; depois, a renovada esperança de tudo se ajeitar e a velha, santa paciência. Do outro lado, os governos federal, estadual e municipais, que só agora liberam verbas, removem famílias de outras regiões de risco, determinam terrenos para construções de moradias de emergência. A Caixa Econômica vai liberar empréstimos para as famílias reconstruírem suas casas. Empréstimos? Não seria mais exato falar em indenizações?Agora, só agora, as providências - se é que o dinheiro do Rio não vai parar outra vez na Bahia. Ah, o velho PMDB, nossa mais envergonhada resignação! Qual a diferença, hoje, em relação ao ex-PFL?No Morro do Borel, 150 pessoas - somente desabrigados e seus familiares - fazem protesto contra a precariedade de sua condição e exigem a presença do poder público. Manifesto do Comitê de Mobilização e Solidariedade das Favelas de Niterói critica a especulação imobiliária que expulsa famílias pobres dos bairros para as encostas e contribui com a deterioração do meio ambiente. E exige "...compromissos com os problemas públicos, que nos respeitem como cidadãos e seres humanos". Não faltarão autoridades para acusar os poucos que se mobilizam para protestar, de politizarem a questão. Uai: mas a questão não é política? Querem que acreditemos que viver sobre um velho lixão (há 17 mil pessoas em condições semelhantes na grande São Paulo) é uma situação... natural?Nós somos os derrotados que não conseguem chorar. Vivemos, todos, sobre uma espécie de lixo mal soterrado. Antigamente se chamava entulho autoritário. Somos o cachorrinho do Morro do Bumba, salvos por um triz, sem entender o que temos a ver com aquela bagunça toda.

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