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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Os triângulos prateados que caíram do céu

Atualização:

Dentro do dicionário de francês de Burtin-Vinholes para o ginásio, adotado pela professora Fanny Marracini, que ensinou gerações de araraquarenses, ainda está o pequeno triângulo prateado de alumínio finíssimo, quase folha de papel, no qual está impresso o símbolo do 4.º Centenário de São Paulo. Tem 60 anos este triângulo e jamais esquecerei a noite em que, estando no Vale do Anhangabaú, em meio a uma multidão, vi um avião sobrevoando a cidade e despejando uma chuva prateada. Os triângulos desciam batidos pelos focos de potentes holofotes, como se fosse uma estreia hollywoodiana. A luz lambia as paredes do Teatro Municipal, do prédio da Light, o Viaduto do Chá, a antiga Câmara Municipal, o Correio, o prédio do Matarazzo, sempre citado como do homem mais rico do Brasil. Eram milhares de triângulos que rebatiam a luz e nos davam a sensação de que as estrelas todas estavam caindo naquela noite, cujo mês se perdeu na memória. Pode ter sido fevereiro ou começo de março, porque eu ainda estava em férias. O povo avançava e se atropelava para apanhar os triângulos prateados, não sei como não saiu gente pisoteada. Do monte que peguei, me desfiz de vários, estavam amarrotados, sujos, molhados. Será que tinha chovido naquela noite? Guardei alguns, coloquei entre as páginas de livros. Um deles no dicionário de francês. Mostrava aos colegas do ginásio para fazer inveja. Vir a São Paulo dava status, vir aqui era sonho, ainda mais sendo 4.º Centenário, com tantas comemorações. Para vir do interior só havia um transporte, os trens da Companhia Paulista, um deles de luxo, o azul, com poltronas numeradas. Não existiam as companhias de ônibus e quem tinha carro nem sempre ousava colocá-lo naquela estrada de pista única. Entrava-se na capital por vias labirínticas, que atravessavam a Lapa e a Vila Romana, era um tal de virar à direita, à esquerda, perder-se em becos sem sinalização. O 4.º Centenário foi uma festa para valer. Ao menos aos meus olhos de provinciano deslumbrado. Para quem estava acostumado com o Jardim Público de minha terra, chegar ao imenso Ibirapuera foi um deslumbramento. Parte deste fascínio recuperei há pouco com o livro de German Lorca, que foi o fotógrafo oficial das festas e capturou tudo com a atmosfera que eu tinha na cabeça. São Paulo era a capital do cinema, aqui estavam as salas mais chiques e sofisticadas da Américas. Sem dinheiro para ver todos os filmes, eu parava em frente do Cine Metro, de boca aberta com aquele barroco, ou rococó, ou seja lá que estilo fosse. Havia o República com sua tela de mais de 100 metros; o Ipiranga, com o Pullman. Ou olhava para a monumental entrada do Cine Marrocos, que tinha sido a sala oficial do Festival Internacional de Cinema, que trouxe astros e estrelas do mundo. Poucos, a não ser cinéfilos nostálgicos, se lembram de Errol Flynn (segundo os jornais, passou o festival inteiro bêbado, caindo pelas tabelas), Fred Mac Murray, June Haver (que depois virou freira). Mas tivemos Joan Fontaine, que morreu há pouco, e Ann Miller, com sua longas pernas, perfeitas, estrela absoluta dos musicais americanos. Os mais cultos exigem que eu fale de Eric Von Stroheim, ator e diretor, clássico, a própria história do cinema. Guardo desse festival a imagem de uma estrelinha que veio do Recife, descoberta por Cavalcanti, morena, linda, Aurora Duarte.O 4.º Centenário está na parede de meu estúdio. É o cartaz desenhado por Alexandre Wollner, grande figura das artes plásticas brasileiras, criador de identidades visuais que ficaram no imaginário do País, ativo aos 86 anos, jovial e engraçado, generoso. Certa noite, contei a ele, em uma mesa da cantina Pasquale, a dor que senti ao perder o pôster do festival, conseguido a duras penas, 60 anos atrás, e uma semana depois vi o cartaz chegar em casa, emoldurado. Caiu-me o queixo tal presente que trouxe de volta o menino de 18 anos que não assistiu ao festival, não viu nenhum daqueles astros (puxa, Jane Powell era tão bonitinha). Por isso pensei: Alexandre é grande.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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