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Os tetos

Thomas Piketty pode contar nos dedos da mão invisível do mercado que os neoliberais tanto gostam de citar a quantidade de economistas do seu lado

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Por Luis Fernando Verissimo
Atualização:

Cada era com seu vocabulário. De repente, a palavra “presencial” ganhou uma notoriedade que antes não tinha. Presencial: significando na presença física de, em contraste com a ausência de, ou com a presença apenas virtual de. Uma palavra de muitos sentidos, perfeita para esta era de dissimulações, que só vendo, tocando e cheirando para crer. 

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Outra expressão que deve sua existência à era surgiu no mundo rarefeito do jargão econômico. Inventada, até onde eu sei, pelo ministro Paulo Guedes, que se sai melhor fazendo frases do que dirigindo a economia. Guedes chama de “fura- teto” quem quer ultrapassar os limites da responsabilidade fiscal e se declara um defensor da inteireza do teto, ameaçada por gastadores com seus sonhos igualitários irrealistas. Em todo o lugar em que os “fura- tetos” são demonizados, o capitalismo se penitencia, se penitencia, mas não muda. No fundo, o que se discute não é a defesa do sacrossanto teto, mas sua utilidade nos rituais de falsa penitência com que o capital protege sua alma junto com seus lucros, enquanto o sonho é eternamente adiado.

O livro O Capital no Século 21 é um tijolo de 700 páginas em que seu autor, Thomas Piketty, atirou contra a confortável certeza de que é só dar tempo ao capital que ele se reformará sozinho, provando com estatísticas e gráficos (e sabendo-se o que se sabe do prontuário do capitalismo) que o milagre é improvável, e afundando no processo ilusões social-democratas. Há pouco, saiu outro tijolo do Piketty, este com mais de mil páginas, intitulado Capital e Ideologia. Quem teve preparo físico para enfrentar o novo livro, como o economista Paulo Gurgel Valente, que fez uma valiosa leitura crítica, gostou do que leu, principalmente porque Capital e Ideologia é mais abrangente que o livro anterior, cobrindo mais história, geografia e economias – apesar de dar pouca atenção ao Brasil. 

Piketty não tem problema em contrariar a ortodoxia marxista, mas deixa claro que é um “fura- teto” convicto. Sabe que pertence a uma minoria: pode contar nos dedos da mão invisível do mercado que os neoliberais tanto gostam de citar a quantidade de economistas do seu lado. Mas é um aliado precioso. Pelos seus tijolaços certeiros.

É ESCRITOR, CRONISTA, TRADUTOR, AUTOR DE TEATRO E ROTEIRISTA

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