Os tempos mudaram? As ideias também

Com criatividade surpreendente artistas driblam cópias da era moderna

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

 

 

Medeski, Martin & Wood. Antes de gravar CD, trio testou todo seu repertório novo nos shows

 

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  O filósofo e pensador Walter Benjamin (1892-1940) morava em Paris quando se queixou à amiga Adrienne Monnier, em fevereiro de 1930, que não conseguia admirar verdadeiramente as fotografias das obras-primas expostas nos museus. Atribuiu o fato a uma velha idiossincrasia. Ou seja, à mania de querer frequentar as próprias obras, sem intermediários nem cópias. A observação está na raiz de seu mais célebre ensaio, A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica, escrito seis anos mais tarde. Numa frase: a obra de arte perdeu sua aura por causa das novas tecnologias de reprodução, dizia Benjamin.

Se olhasse hoje para o momento que vivem as músicas, ele voltar a sentir-se satisfeito. Depois de décadas de orgia na reprodução e multiplicação das cópias, a tecnologia chegou ao limite, banalizando o estatuto da obra de arte, como diria Benjamin.

Sabem o que o consumidor de música mais procura hoje? Não é abarrotar ainda mais suas engenhocas tecnológicas. Sabe que não terá tempo para ouvir o que acumula. Busca, utopicamente, recuperar o gostinho de comungar com a "aura" perdida da obra de arte, sem dispensar as tecnologias à mão, claro.

Enquanto 99,9% dos músicos tentam sair desta camisa de força, alguns raros iluminados - da vanguarda contemporânea ao jazz, da música clássica convencional ao intérprete obsessivo pela tecnologia que produz avatares do passado - buscam recuperar a aura da obra de arte. E propõem caminhos divergentes - e criativos, para provocar no ouvinte/espectador a sensação de que captura a aura da música ao comprar tais produtos. Por isso, o preço pode ser salgado. Alguns dos produtos (leia mais abaixo) chegam a custar algumas centenas de reais.

Cada um a seu modo, músicos propõem novas formas de audição e participação no processo musical. Há casos em que o ouvinte age como num videogame; outras artes são convocadas para fazer do projeto algo multiartístico - e não mais só musical; o som tem qualidade superlativa; ou inverte-se o jurássico processo do passado, quando o músico lutava para gravar o disco, e em seguida saía com ele debaixo do braço para divulgá-lo.

Tom Beghin, fortepianista e professor na Universidade de McGill, Canadá, publicou em 2008 o livro Haydn and the performance of Rhetoric (Ed. da Universidade de Chicago), que já vinha com um CD com exemplos sonoros; agora lança The Virtual Haydn - Complete Works for Solo Keyboard. São 18 horas de música em três DVDs-áudio Blu-Ray (portanto, da mais alta qualidade técnica disponível hoje), em que Beghin executa toda a obra para teclado de Haydn.

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Engenheiros acústicos reproduziram em estúdio a acústica de várias salas históricas onde Haydn executou as sonatas (a sala de sua casa, o palácio dos Esterhazy, o teatro em Londres e salas vienenses). Também foram construídas réplicas dos vários tipos de instrumentos de teclado usados por Haydn em meio século (clavicórdio, dois modelos de cravo, um piano quadrado, um fortepiano vienense e um dos primeiros pianos modernos ingleses do fim do século 18).

Odisseia. No quarto DVD, o único com vídeo, um documentário explica a odisseia de Beghin e o mostra executando peças de Haydn em cada um dos instrumentos. Detalhe: quem compra o kit pode brincar tirando o instrumento de uma sala e colocando-o em outra, ou mudar de instrumento. É um autêntico videogame para maníacos por Haydn e música clássica. Treze anos atrás a compositora finlandesa Kaija Saariaho prefigurou isso em Prisma, um CD-ROM de 1997 no qual se pode brincar de compositor, unindo fragmentos de células sonoras. O CD intitula-se Private Gardens; e o CD-ROM Prisma, que na época estava na moda.

The Radiolarians: the Evolutionary Set é o projeto do criativo trio de jazz Medeski, Martin & Wood que inverte a equação da produção e recepção da música. Documenta a gênese, desenvolvimento e produto final de um largo período criativo. Eles tocaram durante um ano só criações originais, em shows e estúdio. E só agora lançam o pacotaço: três CDs com registros em estúdio e ao vivo; um CD só com um show ao vivo; dois LPs em vinil; um CD remix, com participação de DJs; e um DVD contando toda a saga. As milhares de pessoas que assistiram aos shows se sentem partícipes do processo criativo. Isso é que é recomprar a "aura" da obra de arte.

 

 

 

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