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Os segredos de uma feira literária

Programador da Flip revela como funcionam os bastidores do evento de Paraty

Por Flávio Moura
Atualização:

Um dos lados divertidos de trabalhar na curadoria da Flip é receber dicas. Não há pessoa próxima que não tenha sugestão de autor. No mais das vezes, a ideia é bem-vinda e ajuda a engrossar a lista de possíveis convidados. Mas sempre há quem acredite que eventuais ausências se devem ao esquecimento da curadoria. Muita gente acha que basta estalar o dedo para ter um autor de grande porte no evento - e vem com olhar condescendente apontar uma falta na programação. "Umberto Eco", sussurram alguns. "Woody Allen, chama o Woody Allen", assopram outros. "Cara, o Philip Roth, por que você não chama o Philip Roth?" Foi engraçado nas primeiras 350 vezes que disseram isso.

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Escolher os autores de maior destaque da Flip é mirar nas grandes figuras do mundo ilustrado e acertar nas que têm interesse em vir ao Brasil ou estão acostumadas a excursionar pelo mundo para promover seus trabalhos. A Flip, nunca é demais lembrar, não oferece cachê. A persuasão tem de se dar por outras vias - e para isso a lista de convidados das edições anteriores costuma ser atrativo poderoso.

Também por isso o trabalho é feito em contato próximo com as editoras. Todo ano há quem venha contar quantos autores de cada editora estão presentes e suspeitar de alguma forma de favorecimento. Mas o fato é que a curadoria trabalha em relação estreita com todas as editoras cujo catálogo se aproxima do perfil dos autores da Flip. Parcela expressiva dos convites é feita por intermédio delas - e a elas se deve creditar a presença de muitos dos grandes nomes que já estiveram em Paraty.

Claro que sempre há interesses em jogo. A editora tende a trabalhar com mais afinco para a vinda de um autor com livro para ser lançado na época da Flip. Mas isso é bom para todo mundo. Os jornais têm "gancho" para tratar do assunto - a presença na Flip já justificaria a pauta, mas um livro novo é garantia de espaço maior. O público tem acesso fácil à obra do autor de seu interesse. E a mesa na Flip também ganha um mote, o que faz sentido para que os autores voltem ao festival. Salman Rushdie, por exemplo, esteve em Paraty em 2005 para lançar Shalimar, O Equilibrista. Agora, volta para falar sobre seu livro mais recente, Luka e o Fogo da Vida. O autor é o mesmo, mas o assunto é outro.

Agenda. Isso não quer dizer que a Flip deixará de trazer um autor importante apenas porque não há lançamento previsto. A projeção da festa é grande demais para que fique a reboque do calendário das editoras. Em muitos casos, o efeito contrário pode ocorrer: a presença de um autor em Paraty vir antes de sua publicação no País. O exemplo mais imediato é Tom Stoppard, que veio em 2008. É um dos maiores dramaturgos em atividade no mundo. Mas quase nada de sua obra teatral estava publicada em português (teatro, como se sabe, só não é um desastre comercial maior do que poesia). Depois da Flip, algumas de suas peças foram encenadas por companhias importantes e uma editora grande anunciou a publicação de seus trabalhos. Não dá para atribuir o feito apenas à Flip, mas é certo que a presença em Paraty ajudou a inseri-lo na agenda cultural do País.

Há um lado voyeur no trabalho da curadoria. Tentar acesso às grandes figuras da literatura é ouvir sobre sua vida íntima - usada como desculpa para recusa nas respostas mais educadas. Um celebrado autor de origem latina é um desses casos. Em 2008, não pôde vir porque tinha "um importante casamento na Itália". Convidado para 2010, esse mesmo autor justificou a ausência com um detalhado relato sobre seus cistos na coluna. Uma outra autora residente nos EUA, ainda mais jovem e celebrada que o primeiro, costuma dar respostas menos críveis. Na última delas, alegou que o cachorro estava muito doente e não poderia em hipótese nenhuma ser abandonado.

Nem sempre estamos diante de desculpas, porém. E a insistência nessas ocasiões pode se transformar numa prova de insensibilidade. Foi o que aconteceu com Tony Judt. O grande historiador britânico havia confirmado presença em 2008. Poucas semanas antes, cancelou. Em 2009 a curadoria voltou à carga: sua presença em Paraty seria sucesso na certa, renderia páginas e páginas nos jornais, daria prestígio, enfim, parecia o caso de insistir. Mais uma vez, a resposta era negativa em razão de doença.

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Este ano, a curadoria estava prestes a mandar novo convite quando um artigo de Judt numa publicação americana expôs seu problema de saúde. Ele padece da mesma doença degenerativa do físico Stephen Hawking. A foto dele em cadeira de rodas, os membros retorcidos e a respirar por ajuda de aparelhos, sintetizava a gravidade da situação.

Há um automatismo na lida com os convites que às vezes atrapalha: é grande o risco de acabar trabalhando apenas para comprovar o prestígio da Flip, expor quanto a curadoria é "antenada" com o debate internacional, confundir escolha criteriosa com mercantilismo da notoriedade alheia. O caso de Judt é um exemplo claro.

E esse não é traço apenas dos festivais literários. Quem quer que trabalhe com cultura está sujeito ao risco: o nome do autor às vezes parece que se descola do seu trabalho, vira objeto de desejo numa luta por distinção que caminha de mãos dadas com o fetichismo. Daí para o universo das grifes do mundo da moda é um pulo.

Callas. Os agentes literários são o maior sintoma dessa lógica. Um escritor mediano que já tenha ganhado prêmio e obtido alguma repercussão crítica é tratado pelo agente como se fosse a Maria Callas (falamos de autores que escrevem em inglês e fazem sucesso nos EUA, naturalmente). A agente de uma autora respeitada, mas nem de perto tão celebrada quanto muitos que já foram à Flip, queria US$ 60 mil e duas passagens de primeira classe para que sua cliente desse as caras em Paraty.

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Mas nunca eles foram tão poderosos. Um agente literário com uma lista forte de autores tem as melhores editoras do mundo à sua disposição. Ele não controla só os direitos autorais, mas a qualidade das traduções, as estratégias de marketing, o projeto gráfico. Parte do trabalho dos editores - e dos curadores da Flip - é cultivar boas relações com os agentes mais importantes. E brigar para não acabar preterido num jogo que é cada vez mais impessoal e agressivo. Não por acaso, o agente literário mais poderoso do momento (ele é a cara do John Malkovich) atende pelo singelo apelido de "chacal".

É preciso miopia para achar que a Flip não mudou a paisagem cultural do País. Sua presidente, a editora inglesa Liz Calder, teve e tem papel decisivo para a inserção internacional fora de série obtida pela festa, além de acompanhar de perto cada passo da programação. A Casa Azul, entidade que organiza a Flip, começou a desenvolver trabalhos sociais e urbanísticos em Paraty muito antes de o evento surgir, preencheu lacunas deixadas pelo poder público e encontrou uma química entre cultura e cidade que explica parte do sucesso da Flip.

Mas o Brasil continua sendo um país de poucos leitores na distante América do Sul. Não há pré-sal, Olimpíadas ou Copa do Mundo que mude essa condição de destino exótico aos olhos de muitos autores. Convidado para a edição de 2008, o crítico George Steiner resumiu bem o problema em sua resposta. A carta vinha batida à máquina, numa folha timbrada da Universidade de Cambridge: "Caro senhor: estou prestes a completar 80 anos e o Brasil está, infelizmente, fora de questão."

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