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Luzes da cidade

Os predestinados

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Por LÚCIA GUIMARÃES
Atualização:

A esta altura, a maioria dos leitores ouviu falar do incidente. A personalidade de TV e empresária Oprah Winfrey acusou a vendedora de uma butique de Zurique de ter se recusado a lhe mostrar uma bolsa de US$ 40 mil. A ignorância da jovem é confirmada pelo racismo da reação, infelizmente comum na Suíça hoje, e não pelo fato de que ela não reconheceu a mulher cuja fortuna é avaliada em US$ 2.8 bilhões. O incidente foi introduzido na usina multiplicadora de notícias de celebridades com precisão suíça pela própria Oprah, numa entrevista a um programa de entretenimento, a mensagem cuidadosamente calibrada para expor o racismo estúpido sem arranhar seus status no panteão que ocupa.Afinal, o lema da pontificadora-chefe da vida americana é Viva a Melhor Vida Possível. Quando Oprah Winfrey repete seus slogans de triunfo sobre adversidade - e esta mulher estuprada por parentes na infância entende do assunto - eu me lembro da cena de abertura do filme Ponto Final, de Woody Allen, de 2005. A bola de tênis bate na rede e quem sabe de que lado da quadra vai cair?, lembra o narrador, nesta história em que a sorte intervém a favor do protagonista.É interessante como, à medida que a disparidade de renda cresceu nas últimas três décadas nos EUA, aumentou igualmente a narrativa da meritocracia no rarefeito universo do privilégio. Poucos conhecem a propaganda da meritocracia como o escritor Michael Lewis, autor de livros como Bumerangue, A Nova Novidade e O Treinador: Lições Sobre o Jogo da Vida. Em junho do ano passado, ele fez o discurso de formatura da turma da prestigiada Universidade de Princeton, onde havia se formado em História da Arte, 30 anos antes.Lewis lembrou que, apesar da ambição de escrever, continuava perdido e sem emprego, aos 24 anos, quando, por sorte, se encontrou sentado num jantar ao lado da mulher de um alto executivo da Salomon Brothers. Ela azucrinou o marido para receber o jovem no banco de investimentos onde nasceu a farra de Wall Street nos anos 80. E, por sorte, o entediado funcionário que recebeu Lewis o colocou na divisão de derivativos. Em pouco mais de um ano, munido de seu conhecimento sobre escultura renascentista, recebia centenas de milhares de dólares de bônus e aconselhava investidores a aplicar seus milhões.Mérito? Claro que não, admite Lewis, que pediu demissão e foi escrever seu primeiro bestseller, O Jogo da Mentira, sobre a orgia que tinha testemunhado. Lewis, um excelente jornalista investigativo e escritor elegante, diz que a sorte é um elemento crucial no resultado da sua narrativa de personagem hoje rico e famoso. Naquela tarde em Princeton, ele pediu aos formandos que não façam a besteira de racionalizar o próprio sucesso.Os bônus de Wall Street, os salários estratosféricos de CEO's não são produto exclusivo da matemática do mérito, e sim de resultados que dependem em parte da sorte. Sua mera entrada na universidade, advertiu os jovens, já traz embutido o acaso. E com a boa sorte vem a obrigação para os que tiveram má sorte.Na formatura de Harvard deste ano, Oprah Winfrey, além de receber um doutorado honorário, fez o discurso de formatura, pontuado pela habitual narrativa de triunfo. Entre outras frases, ela disse: "Não existe fracasso. Fracasso é a vida tentando nos fazer mudar de direção.""Oprah mentiu em Harvard", disse um casmurro da imprensa americana, imprensa que dificilmente critica a empresária. Leon Wieseltier, um editor da revista New Republic, destaca o absurdo do que chama de a desvantagem cognitiva das elites, cujo sucesso é definido como a conclusão do alinhamento de forças interiores. Neste mundo, a mediocridade econômica é igualada à mediocridade humana. Tente dizer a um desempregado ou à família desabrigada numa enchente que a derrota não passa de um erro de interpretação.

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