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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Os incomodados que se mudem

A base social de um sistema democrático é a atribuição de igualdade aos espaços públicos

Atualização:

Eis uma expressão corrente e que, como tudo que é habitual, possui a estabilidade das tradições - dos usos realizados sem pensar - que o nativo não enxerga, mas o estrangeiro nela desvenda sentido e profundidade.

Quem não foi alvo dessa admoestação em algum espaço público? Numa igreja ou biblioteca, onde o silêncio foi ignorado por visitantes; na praia, onde o grupo ao lado ouve música a pleno vapor; ou num restaurante, no qual se comemora o aniversário de um parente? 

'É preciso estar consciente de que o proibido fumar, o limite do número de pessoas num elevador, o respeito ao lugar na fila e o sinal de trânsito valem para todos.' Foto: Pixabay

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Para um observador do cotidiano, a expressão seria, quem sabe, irmã do “você sabe com quem está falando?”, pois ambas indicam como o anonimato típico de espaços abertos e igualitários pode ser apropriado por alguma pessoa ou grupo de modo antidemocrático. 

Em ambos os casos, o pressuposto nacional é que espaços e pessoas têm dois lados: é igualitário e universal (todos são cidadãos); e também é gradualista e particularista (o aniversário do avô legitima a ocupação do restaurante) - e, se você se sente incomodado, mude-se!

A base social de um sistema democrático é a atribuição de igualdade (e de anonimato e impessoalidade) aos espaços públicos. Mas em sociedades de forte lastro aristocrático e escravocrata, esses espaços não pertencem ao “povo” ou à “raia miúda”, mas aos fidalgos e supercidadãos. 

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A soberania atribuída a certos cargos públicos está coberta de privilégios distribuídos de acordo com uma gradação, que vai do superior ao inferior; do cume à base do sistema. Nele, ninguém quer ser um “homem comum” e fazer parte da “turbamulta”, pois o anonimato é sinônimo de subcidadania. Nessas sociedades, deve-se navegar sabendo bem com quem falamos e “onde estamos pisando”. 

Todos fomos vítimas dessas expressões em algum momento. Elas, como tenho me esforçado em mostrar, surgem em algum espaço marcado e definido pelo anonimato, pela liberdade e pela igualdade.

Definida a situação, os exemplos chegam em torrente, revelando um lado oculto (mas estruturante) da vida social brasileira. Um lado que recusa a igualdade parceira da liberdade que, por sua vez, demanda o anonimato - esse irmão da impessoalidade. O autocontrole exigido pela igualdade em espaços públicos é problemático num sistema onde todos são barões, conforme diz Sergio Buarque de Holanda. Nele, a exceção é enxergar o direito do outro - de quem não faz parte do nosso grupo. 

É preciso estar consciente de que o proibido fumar, o limite do número de pessoas num elevador, o respeito ao lugar na fila e o sinal de trânsito valem para todos - sobretudo e principalmente - para nós!

Opinião por Roberto DaMatta
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